10 de dez. de 2021

O calote geral na ilha da fantasia

Por Krishnamurti Góes dos Anjos 

Há coisa de uns trezentos anos atrás, época que passou à história como o Iluminismo, o ser humano andou acreditando que essa época se configuraria não tanto como um compacto sistema de doutrinas, mas como um movimento em cujas bases estaria a confiança na razão humana, cujo desenvolvimento seria a condição de progresso para a humanidade e de libertação dos vínculos cegos e absurdos da tradição, das raízes da ignorância, da superstição, do mito e da opressão. A partir de então, os textos ficcionais que passaram à história como utopias, buscavam uma emancipação efetiva ao visualizar um mundo baseado em ideias novas. Sua confiança no futuro era o fundamento normativo que lhes garantia eficácia ideológica. 

O tempo passou e, em suas marchas e contramarchas, avanços e recuos monumentais, a humanidade chega afinal a decretar o fim da história. O individualismo burguês atinge seu ápice numa ruptura entre as esferas da vida pública e privada e sob a égide de um discurso silenciador, o homem termina sendo visto como um terrível incorrigível.  De forma que também em ficção, aquela forma de vida considerada perfeita, ou pelo menos superior, deu lugar às distopias que delimitam o desvio, a deturpação de um quadro de vida conhecido. Geralmente, são obras que se caracterizam pela existência de totalitarismos, autoritarismos e opressivos controles econômico-sociais. Uma sociedade oposta à utópica, portanto. E ainda mais negativa, porque o Estado normalmente é corrupto, as normas que visam ao bem comum são flexíveis e a tecnologia é utilizada como ferramenta de controle, seja dos indivíduos, do Estado ou de corporações. 

O fato é que a razão e o conhecimento científico (tão caros às utopias passadas) perderam sua legitimidade em função da não concretização das promessas do projeto iluminista. E estamos a braços com o pós-modernismo e sua descrença em um projeto histórico específico para o homem que o mobilize em termos da ação política, e que nos faz desconsiderar quaisquer ideais a serem realizados no futuro, encerrando-nos compulsoriamente no imediatismo do presente, no consumo do efêmero e, quando muito, em lutas políticas de ocasião ao sabor de interesses pontuais. 

As utopias negativas expressam o sentimento de impotência e desesperança do homem pós-moderno perdido num labirinto em que a tal da racionalidade se converteu em instrumento: em vez de ser a condição de realização daquela promessa pensada há séculos, passou a ser fim em si mesma, e de conluio com uma barbárie cada vez mais presente no tecido social. O que hoje parece ser a nossa cruel realidade, inclusive em termos ficcionais, é que o próprio conceito de “utopia” se atrofiou a tal ponto que passa a denotar a impossibilidade de qualquer transformação social mais radical. Colocar o futuro no registro simples do piorável pode dar margem a meras apologias da decadência. Seria assumir definitivamente um vácuo existencial de sequer pensarmos em projetos futuros. 

O romance Calote do escritor Leonardo Valente, publicado no final do fatídico ano de 2020, apresenta elementos que poderiam classificá-lo como uma distopia. Segundo a sinopse da editora, lemos que houve aqui e agora e, no Brasil, uma revolução. Entretanto, nem uma pedra fora lançada, nem uma única vitrine quebrada, sequer uma passeata foi vista. A distopia se caracterizaria como tal tendo em vista o inusitado de uma situação: um boicote geral aos pagamentos das contas por parte da população, supostamente indignada ante a escorcha violenta de quem vende “créditos”. Apenas os boletos, de repente, ficaram em aberto. Da noite para o dia, silenciosa e misteriosamente, a população parou de pagar suas contas, e o sistema liberal cruel e individualista começa a ruir. 

 

Promete esta ficção uma revolução em nossa maneira de pensar quanto a contrair e saldar dívidas, sem dúvida, no entanto a caracterização da natureza distópica da narrativa não se concretiza. O máximo que o texto rende nesse sentido são vagas referências a acontecimentos que se já não ocorreram, ou não foram ainda reconhecidos como verdades, por razões óbvias, não chegam a causar grandes perplexidades. “As massas perderam sua identidade na cerimônia de coroação do Mercado como o novo Soberano de são Paulo, a mais nova cidade-feudo obediente ao liberalismo radical”, o Mercado derrubou o empoeirado e já sem credibilidade, a maior cidade do país passou a ter um gerente no lugar de um prefeito, e um conselho de acionistas onde uma vez figurou uma Câmara Municipal (só está faltando em verdade isto hoje). A novidade imaginativa fica mesmo por conta de a Avenida Paulista ter uma via só para as elites, que pagam por essa mordomia, uma pista na qual só circulam os ricos e seus carrões monumentais. 

E a trama narrativa se desenrola desde o prefácio assinado por “Uma personagem endividada”, que não se identifica claramente, mas intuímos tratar-se de Marlene Scheidt, uma mulher da típica classe média baixa, que passa toda a primeira parte do romance – 60 páginas – a relatar sua vida de viúva e mãe de dois filhos menores. Como acabou se deixando levar pelo “canto de sereia” dos cartões de crédito e como uma bola de neve, sua dívida chegou a astronômicos R$ 22.333,52. E detalhe: o valor mínimo a pagar na fatura do mês refletia um valor maior do que ela recebia como pagamento de salário. Não, Marlene não era irresponsável e esbanjava em compras de supérfluos, apenas deixou-se perder pelas acrobacias que todos nós fazemos para sobreviver em um país como o Brasil. 

O drama de Marlene se acentua porque o proprietário do apartamento em que ela vive resolve justamente nesse momento pedir que desocupe o imóvel. A “única” diversão que os filhos têm, a televisão, resolve queimar, pivetes de rua roubam os celulares dos filhos, tudo na mesma época. Um desastre, uma hecatombe para ela (a propósito desse termo, observamos na obra uma linguagem carregada de ironia e superlativismos: “extermínio”, “trágico”, “destruição total”, “hecatombe”, “desfechos funestos”). Marlene chega ao fim do poço, sem saber o que fazer e, em uma noite de completo desespero, ao buscar uma tábua de salvação qualquer, lembra-se de David Scheidt, filho de seu ex-marido morto, e irmão de seus dois filhos menores. Um verdadeiro vampirinho do mercado financeiro, sujeito neurótico que vive exclusivamente para o trabalho e para ganhar cada vez mais e mais dinheiro. Até para trepar o sujeito é calculista (amor é produto inexistente em uma sociedade assim). O homem é gerente de um banco, e inventou lá um tal programa para controlar débitos e sobretudo contas a pagar de toda a população. 

É nesta conjunção de conflitos terríveis que acontece o “dia da insubordinação civil” – o tal calote geral. O desacerto dos acontecimentos leva a uma espiral de tensão. Marlene a tentar contato com David para pedir alguma ajuda financeira, e este imerso em uma pressão terrível dos seus superiores, para desvendar causas, ou cabeças, ou implicados, ou o que seja que está levando a esse comportamento dos devedores. De um lado o representante da meritocracia e dos privilégios; de outro a vítima da extorsão histórica que atingia a quase todos e, a partir de então, supostamente, uma combatente das novas e inusitadas trincheiras da resistência. Assim segue a segunda parte da obra que alterna capítulos entre “A fatura de Marlene Scheidt” e a “o dia da insubordinação civil”, até um desfecho surpreendente que passa por uma completa inversão de papéis. 

Milagrosamente, o maldito cartão de Crédito de Marlene, graças a uma ‘anistia econômica’, se transforma em varinha de condão a abrir todas as portas do consumo, ao passo que David embarca em uma viagem sem volta rumo à miséria econômica e social. Invertem-se os papeis. Mas seria um erro pensar que a oprimida de antes transforma-se em um ser consciente que tenta trilhar outros caminhos mais humanos. Não, busca a todo custo adotar o padrão de vida das classes privilegiadas, assume a máscara de pessoa de classe média alta, consumindo o que não tem, e vivendo em um mundo de aparências. Esse desenrolar nos faz lembrar do pensador alemão Peter Sloterdijk, que cunhou a expressão niilismo pós-moderno e que abriga um tipo de homem que renuncia à continuidade por meio da procriação e da transmissão de heranças culturais, em nome de seus próprios privilégios, numa espiral de egoísmo e autossatisfação.


Não há em todo o romance qualquer registro sobre afetos, amores, amizades sinceras ou afeições entre aquelas tristes criaturas, todas feitas de puro cálculo do que pode o todo poderoso dinheiro. Até o amor maternal que Marlene devota aos filhos Hélio e Ricardinho é todo calcado no que ela pode ou não comprar ou proporcionar aos pequenos, tais como aparelhos celulares de última geração, videogames, assistir desfiles de escolas de samba na Marquês de Sapucaí ou, finalmente, levá-los àquele famoso parque de diversões daqui mesmo da Bruzundanga, o Hopi Hari. 

Lembramos que obras ficcionais classificadas como utopias ou distopias são, por força, tendencialmente fantasistas, radicam numa realidade que é variável, em função do ponto de partida de cada nova criação, e que figuram em uma linha de um futuro mais ou menos próximo. Difícil enquadrar Calote como uma distopia na acepção comumente conhecida. Pensamos que talvez se possa afirmar tratar-se de uma distopia paródica (paródica aqui entendida, frise-se, como obra literária, com tom fortemente jocoso e satírico). 

Edson Santos de Oliveira, da EBAP-UFMG, escreveu um verdadeiro ensaio sobre o romance a que deu o título de “Elementos irônicos em Calote, de Leonardo Valente”. A certa altura ele bem caracteriza o tempo histórico da obra: “O tempo histórico do romance é o século XXI, começo de 2020, período da pandemia, momento marcado por uma economia instável, com quebradeiras de empresas, sistema de saúde sem condições de atender a demanda, desemprego crescente (mais de 14 milhões), instabilidade financeira e política provocadas por uma administração pública negligente. Numa política globalizada e neoliberal, o Estado perde sua autonomia, tornando-se incapaz de manter a dignidade do viver e as condições mínimas de cidadania, deixando a população à mercê do mercado. Os sindicatos foram desmantelados e as universidades, despolitizadas. As camadas da classe média e baixa ficaram a ver navios e os operários do baixo proletariado passaram a viver de migalhas do poder público através de auxílios emergenciais.” 

Não resta dúvida de que a obra fornece elementos para pensarmos criticamente nossa contemporaneidade, na medida em que estimulam o senso crítico do leitor e servem como espaço de reflexão por representar causas e consequências de certos conflitos dentro da perspectiva macro em que o país vai afundando. Com efeito, o enfoque dado leva-nos a enveredar por perspectivas focadas em outras questões que poderiam ter sido exploradas na trama romanesca. Questões que ultrapassam em muito os embates entre o Mercado (essa tremenda cachorrada inventada pelo capitalismo para ocultar, dentre outras coisas, as verdadeiras faces dos exploradores), suas taxas de juros extorsivas e, de outro lado, os consumidores. Temos inegáveis e imensos déficits sociais que somente o dinheiro não teria condições de suprimir. Inclua-se o desemprego sistêmico, o subemprego sempre aceito como normal desde o tempo da escravidão, o tal racismo estrutural sempre negado, as superpopulações que entopem os entornos de todas as capitais brasileiras em ocupações desordenadas que ensejam a vigência de estados paralelos baseados em toda prática de terror, o nosso completo e histórico descaso pela educação de base, o altíssimo índice de analfabetismo no país e, infelizmente, essa mentalidade estúpida do farinha pouca meu pirão primeiro, sempre estimulada pela men-ta-li-da-de corrente. 

Todo esse desarranjo nos levar a refletir na urgente necessidade de que surja um pensamento revolucionário através do qual, se não transforme a atualidade, prepare potencialmente um “tempo de agora” ao subjetivar os indivíduos como entidades desejantes de profundas transformações sociais e não meros objetos ou autômatos. Mas isto, nos faz retornar com mais vigor ainda ao já escrito. Não poderá jamais ocorrer nesse estado terrível de divisão antagônica em que vivemos (35 partidos políticos que se afiguram mais como escolas de samba com suas preferências de cores e enredos exclusivistas). Não poderá ocorrer sem que surja afinal, alguma simpatia pela espécie humana e sobretudo, sem um sentido do coletivo. Há uma epígrafe da autoria de José Saramago, que abre uma das partes do romance. Afirma: “A única maneira de liquidar o dragão é cortar- lhe a cabeça, aparar-lhe as unhas não serve de nada”. Francamente; não é preciso grandes exercícios intelectuais para percebermos nitidamente que estamos com os dois pezinhos na areia movediça e, nem mesmo o mal cheiro adicional de um calote generalizado pode modificar sensivelmente a situação dessa imensa ilha da fantasia em que o Brasil se eterniza.