Por Cynthia Beatrice Costa
Um casal de humanos adota uma ovelha em Lamb, o estranho filme islandês da A24
Vocês certamente já notaram que os horrores da paternidade e da maternidade estão no cerne de muito cinema de dar medo. É assustador trazer um novo ser ao mundo, ou, no caso da adoção, trazer um novo ser à intimidade de sua casa. O bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, 1968), de Roman Polanski, é apenas o exemplo mais icônico de uma longa fila de pais angustiados que habitam o gênero cinematográfico, no qual ainda se encaixam o clássico O exorcista (William Friedkin, 1973) e a dupla Ringu (Hideo Nakata, 1998) e O chamado (Gore Verbinski, 2003). Como não se lembrar também de Brinquedo assassino (Tom Holland, 1988), em que uma mãe solteira dá um jeitinho de presentear o filho desejoso de um amigo?
O islandês Lamb, primeiro filme de Valdimar
Johánnsson, vem nessa toada. E radicaliza o gênero. Recém-saído do forno da A24,
lançado em julho de 2021, tem despertado reações variadas por parte da crítica
e do público. É difícil ficar indiferente diante do enredo bizarro: um casal de
criadores de animais, morando isolados na zona rural inóspita da Islândia,
adota uma ovelha como filha. Poderia ser um mote fofo, mas de fofo não tem
nada. A mãe biológica da criatura berra dolorosamente ao pé da janela,
protestando contra o roubo de sua cria. Descobrimos aos poucos por que a
filhotinha conquistou o amor do casal. A chegada de um familiar desequilibra a
situação, que desemboca em um desfecho chocante.
Lamb pode ser interpretado como uma expressão sombria do folclore. Branca de Neve, Rapunzel e tantos outros contos de fadas já nos mostraram que o mítico desejo de ter um herdeiro às vezes conduz casais a atitudes extremas, como negociar com bruxas. Em Lamb não há negociação, apenas um acordo tácito entre Maria (a sueca Noomi Rapace, da série Os homens que não amavam as mulheres, falando islandês no filme) e Ingvar (Hilmir Snær Guðnason). O casal nem precisa conversar sobre a decisão, tal é a naturalidade com que os dois abraçam a missão de criar juntos a pequena Ada. Vamos entendendo passo a passo o vazio que reinava na vida deles, preenchido agora pela “criança”.
Ambos vivenciam o crescimento do serzinho como algo encantador; sua presença parece uni-los mais do que nunca. Do lado de cá, porém, nós acompanhamos o período idílico da nova “família margarina” de maneira desconfortável. Acho que intuímos que haverá um preço a ser pago. Aonde diabos isso vai nos levar? Os diálogos não ajudam muito a acompanhar o que se passa, já que Lamb, à moda do minimalismo escandinavo, quase não tem diálogos.
A atmosfera é construída minuciosamente. Montanhas varridas pelo vento, uma casa parada no tempo, rebanhos livres e rebanhos encarcerados. Os sons de animais e sua expressão física compõem um espetáculo à parte – há quem tenha brincado que o gato, perplexo diante do novo membro da família, mereceria uma indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante.
Escrito por Johánnsson em parceria com o poeta Sjón, o filme é lento, possui poucos acontecimentos e exibe comportamentos esquisitos e/ou inexplicáveis. Estabelece certo intertexto com o cinema de Yorgos Lanthimos, Robert Eggers e Michael Pearce. Estaria mais para drama familiar do que para horror caso não contivesse elementos, senão assustadores, no mínimo aflitivos. Toda a excentricidade não impede, no entanto, que a história envolva, até comova. Há algo de penetrante em Lamb, talvez porque, apesar de seu elemento sobrenatural quase infantil, os sentimentos do pai e da mãe nos despertam empatia.
Costumamos atribuir ao amor de mãe, especificamente, uma força incomparável a qualquer outra. No livro Maternal Horror Film (Filme de Horror Maternal, 2013), Sarah Arnold explora diversos aspectos da personagem da mãe no contexto desse nicho cinematográfico. A mãe pode ser fonte de medo ou de consolo; de violência ou de proteção; pode ser um monstro ou a incubadora de um monstro. A mãe em Lamb mantém a duplicidade. Não à toa chamada Maria, é puro amor e compreensão para com a filha – com as personagens não humanas, porém, às vezes age de forma cruel.
A inocência simbólica dos ovinos, sua docilidade e pureza (“Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo...”), perpassa o conflito inusitado de Lamb. Sua originalidade reside no fato de as coisas serem como parecem: animaizinhos de quatro patas e cobertos de lã são alvo fácil para seres humanos, muito mais egoístas e ardilosos. Ada é doce e pura como se espera de uma ovelhinha. Maria e Ingvar não temem sua filha. Nem se importam com o fato de ela ser diferente. Não desconfiam que ela esteja possuída (Regan), conversando com espíritos através da televisão (Carol-Ann), causando perturbações demoníacas (Samara).
Mas Lamb mostra que sair por aí roubando os filhos dos outros pode não ser uma boa ideia, mesmo que os “outros”, no caso, sejam animais acostumados à submissão. Nesse sentido, o filme também se coloca como horror ecológico, retratando um embate entre os humanos e os animais que sacrificamos e a nossa arrogância ao acreditarmos que sairemos impunes de todo mal causado às outras espécies.
Aliás, é preciso fazer um alerta sobre a obra de Johánnsson: aqueles sensíveis ao sofrimento animal o vivenciarão como uma verdadeira experiência de horror. Mesmo antes de algumas atrocidades cruzarem a tela, ovelhas balindo em cercadinhos estreitos e cordeiros servidos à mesa a poucos passos de distância de seus parentes ainda vivos podem afligir espectadores desavisados. (Spoiler necessário: nem o cachorro é poupado.)
É preciso salientar, em conclusão, que Lamb está definitivamente naquele grupo de filmes que definimos como “não é para todo mundo”. É preciso ter paciência e estômago. Os que estiverem dispostos a aguentar podem contar com uma sensação de recompensa ao final.
Vencedor do
prêmio Um Certo Olhar em Cannes, Lamb ainda
não está disponível em streaming, mas
não deve demorar a chegar.