12 de out. de 2021

O alvo

Por Kleber Lima

Agora pouco senti algo me atacar. Um vulto, uma sombra, um estrupício qualquer. Ninguém deve ter visto. Ninguém nunca vê. Há tempos tenho relatado isso a amigos. Não acreditam em mim. Para lhes provar, eu lhes mostro que fui violentamente atacado. Pancadas pelo corpo, principalmente na altura do peito. Nada veem, nada. Tenho marcas de coronhadas, pauladas, arranhões, beliscões, pontadas de facas. Elas se acumulam sobre meu corpo. Costumam ser ataques rápidos. Eu mesmo nada identifico. Não imagino quem seria o agressor, ou se um gesto epilético do ar ou se um ríspido arroubo invisível. No entanto, sou sempre o alvo.   

Durante a noite, sacudo-me inteiro. Se vou para um lado da cama encontro com matilhas inimigas rosnando contra mim. Se vou para o outro lado, um iminente galopar desvairado de manadas ameaça pisar minha cabeça. Essas imagens perturbam bastante. Minha própria cama me sufoca nestas noites destrutivas. Eu não saio mais ileso de nada na vida. Impossível. Impossível. Impossível.

A violência está crescendo. Para onde mais ela vai? O que posso fazer? A quem recorrer? Se ao menos identificasse meu agressor, logo me defenderia, mas sou pego de surpresa. De supetão. São horas insones sendo atacado. 

Mas não pensem que simplesmente me vitimo. Não nasci para ser vítima. Tento acertá-lo sempre que pressinto o próximo ataque. É verdade que nunca o acerto. Golpes e mais golpes em vão. Ele é rápido demais, vai logo me enchendo de socos na cara, no peito, no estômago. Lanço as mãos em uma direção e já estou sendo espancado noutra. Termino sempre recuado no canto do quarto. 

Fecho os punhos, com força, mas estou esbaforido. Minha raiva se dispersa inutilmente.

Repito surdamente a mim, para que o inimigo não ouça: “não morrerei assim, não morrerei assim, tenho de acertar esse desgraçado”. 

Acredito que este é o desafio. Acertar e acertar em cheio. E depois, não sair mais de lá, bater, bater com toda força, chafurdar, escarafunchar, escavar, deflorar, habitar e se misturar lá dentro com o que quer que seja. 

Recordo que meu pai lia para mim nos meus tempos de criança. Meu pai sempre foi afeito às artes marciais e às suas Doutrinas Magnas. Enfim, quanto mais buscava se tornar um pai de família mais o álcool o destruía e tudo o mais em sua vida. Algo bom, pode-se dizer, foi um livro. Recordo especialmente de um livro que acabei extraviando para minha biblioteca particular antes que ele partisse e que refletia sobre arqueiros Zen. Versava sobre suas habilidades com arco e flecha e todo o aparato espiritual necessário para se tornar um exímio arqueiro, cujo intento, justamente, era acertar e ser acertado. Mirar sendo mirado. 

Quebrei bastante a cabeça tentando compreender isto. Passava horas pensando a respeito, tentando apreender algo sem, no entanto, dispersar as chamas em que aquelas minhas tentativas me lançavam.  

Então ardia. Livros bons sempre estilhaçam contra meu corpo. 

Agora que estou nesta situação, retomo as reflexões extraídas deste livro como um aviso. É como se tudo tivesse se encaminhado para este momento, como se somente agora pudesse, enfim, transformar aqueles ensinamentos em minhas próprias armas de destruição em massa.

O inimigo ataca novamente. Zomba. Frita minha paciência. Mas mal sabe o que lhe aguarda dessa vez.

Não mais tento me defender. Ao contrário, expando minha envergadura para que me acerte mais inteiramente, estico braços e pernas, dando-lhe o interno das coxas também como foco de golpes. Minhas costas estão nuas, os flancos esticados, as palmas das mãos abertas.

Queria lhe mostrar que seus socos e demais tentativas de espancamento não eram tão contundentes quanto ele possivelmente estivesse imaginando. Que não havia nenhum perigo real.

A cada golpe dele, sobrepunha um meu, mais forte, virulento, fatal. Então, comecei a sentir um incrível prazer. Algo desmesurado. Força irracional. Eu me sentia perigoso e podia presumir que o estava atingindo, empurrando meus punhos para dentro desse visgo escuro, chacoalhando esse vulto demoníaco. Pude sentir seus golpes se afrouxando. Esmorecendo. E até já sabia onde e como tentaria me bater. 

E quanto mais me acertava, mais em cheio o liquidava e foi assim que vi o carrasco tombar, definitivamente, derrotado. Humilhado. Rendido.

Depois de certo tempo, lembro apenas de um vago sorriso em meu rosto brilhando no espelho.

Kleber Lima é bibliotecário. Nasceu em Teresina (PI), em 1984. Publicou o livro Poemas I (Ed. Penalux) em 2016.