Por Krishnamurti Góes dos Anjos
Mais conhecida do público pelos trabalhos como roteirista de séries de sucesso como “A Comédia da Vida Privada” e “A Grande Família”, da Rede Globo, além de inúmeros roteiros para o cinema e da publicação de suas crônicas no jornal O Estado de S. Paulo, a escritora Adriana Falcão lança este mês sua mais recente obra. O romance “Correnteza” vem coroar uma trajetória literária de quase 20 livros publicados desde o premiado “A Máquina”, obra de 1999.
Em verdade, “Correnteza” traz muita semelhança com um texto concebido para o teatro. Não apresenta uma voz narrativa, e o leitor é imerso de chofre no discurso direto das personagens ou em cenas que apresentam algumas dessas personagens em diálogo. A obra confirma, mais uma vez, a imensa capacidade da autora de transitar por variados gêneros literários: do lírico ao narrativo, culminando no dramático. Sem dúvida, a considerável experiência autoral em teatro, cinema e televisão, confere à Adriana uma admirável mobilidade fluídica em seu aparato discursivo e criativo.
Dentro da temporalidade do texto se interligam quatro gerações de uma mesma família na qual só nasceram, até então, mulheres, e que tem na sua ponta mais recuada, Manuela Mello e Sousa, uma senhorinha prestes a completar 90 anos, e na ponta mais jovem, Luísa, com seus quase trinta anos de frescor juvenil e muito, muito desnorteio. Estrutura-se em três partes ou atos: uma introdução de 13 páginas na qual as personagens em linha direta de descendência (Manuela, Teresa, Débora e Luísa) são flagradas na atualidade de seus fluxos de consciência e que serve, em linhas gerais, como “apresentação” das suas personalidades; um capítulo subsequente cujo título é “Águas passadas” que desenvolve a trama ainda em ritmo de consciências individuais perante si mesmas ou em breves diálogos tecidos ao longo do tempo. O suprassumo da obra pela urdidura que a autora consegue realizar é, no entanto, o capítulo “A festa”, onde encontramos as quatro personagens justamente na comemoração dos 90 anos da bisavó Manuela. Sigamos o fluxo da correnteza e deixemos que elas mesmas falem por si:
MANUELA, a bisavó prestes a completar 90 anos, mãe de Teresa: “Comemorar com quem, se todos já se foram? Uma roda de samba no cemitério? Acho que eles não alugam pra festas. Só nós quatro está pra lá de bom. Eu e elas, tudo que eu tenho, tudo que eu fiz, eu que fiz. A Teresa. Que fez a Débora. Que fez a Luísa. Ou seja, fiz todas, se não fosse eu, não tinha elas. Assim como se não fosse minha mãe, não tinha eu, e se não fosse minha avó, não tinha minha mãe, e se não fosse minha bisavó, e assim vem vindo desde muito lá de trás. Tão lá atrás, que desmistura tudo. Uma índia parindo. Uma negra parindo. Uma branca parindo. Portuguesas, holandesas, francesas, mexicanas, americanas, nórdicas, asiáticas, egípcias, sumérias, mulheres parindo. Desde antes de Cristo. Parindo Cristo. Mulheres parindo todas as pessoas que já passaram por esse mundo de meu Deus, quantas células, quantos hormônios, quantas mãos, quantos dedos, quantos fios de cabelo? Ficam brancos. E quem vai cuidar delas quando eu morrer?”
(...)
LUISA, filha da jornalista Débora, com um deputado ex-comunista que “aderiu ao golpe”. Mal entrada na casa dos 30 anos, vive na companhia de um gato chamado Kevin Spacey e vive inúmeros conflitos existenciais, dois deles terríveis. Se vai viver seu sonho de estudar cinema em Cuba ou em Los Angeles, sempre acalentando o sonho de ter uma película sua exibida na Netflix. E o segundo conflito: mensagem de WhatsApp dirigida ao namorado: “fodeu, deu positivo me liga qd sair da aula.”
Está armado o drama.
Muito embora o foco principal do livro recaia sobre as relações entre existência, personagens e suas respectivas personalidades, com percursos diversos feitos pela via da introspecção e com a valorização do olhar feminino, dos afetos e das vivências quotidianas, podemos também constatar que as quatro personagens possuem cada uma “o seu tormento secreto”, unidas todas pelo elo familiar e pelo entrelaçamento de suas respectivas vicissitudes.
Outro aspecto que chama a atenção na obra é o componente político dentro de uma perspectiva de inventário dos governos do que convencionamos chamar de redemocratização da política brasileira pós regime militar. A esse propósito vale referir que a conjuntura atual, na qual vivem as personagens, está indefectivelmente marcada por esse suceder de crises políticas emaranhadas em outras de natureza econômica e social, o que nos leva à percepção de que, se não chegamos a andar para trás, avançamos muito pouco na direção do aprimoramento democrático do sistema político brasileiro. A ineficácia manifesta do atual governo federal em tratar de solucionar os problemas econômicos e sociais que afetam a porção majoritária da população brasileira, a onda de denúncias de práticas de corrupção em órgãos públicos, envolvendo lideranças políticas importantes, e a sensação de insegurança resultante não apenas da violência urbana, mas também de instabilidade econômica de várias naturezas, são elementos que se combinam para formar o clima de pessimismo geral que se tem alastrado, em relação aos frutos desses anos de democracia no país.
Muito a refletir em uma fala como a da bisavó Manuela que a certa altura afirma:
Direita, esquerda, me perdi. Esse aí não era de direita? Que direita? Que esquerda? Ah, fizeram uma aliança. Não dá pra governar sem fazer aliança. Então o de esquerda vota contra isso em troca do de direita votar a favor daquilo, sendo que eles já nem sabem mais o que pensam a respeito disso ou daquilo. Um passa a pensar o contrário do que pensava, desde que o outro não faça o que acreditava que devia fazer. Tem toda uma lógica. Então tiram fotos juntos. Que beleza.
Eis o vergonhoso descalabro em que transformamos a tal democracia.
O escritor John Gardner afirmou com muita propriedade que “o valor da grande ficção não está apenas em divertir-nos ou desviar nossa atenção das preocupações do dia-a-dia, não apenas em aumentar nosso conhecimento de pessoas e lugares, mas em ajudar-nos a saber em que coisas acreditamos, a reforçar as qualidades nobres que porventura tenhamos, a lamentar os nossos defeitos e limitações.” Ao apresentar aos leitores suas quatro personagens femininas, que expressam sensibilidades e vivências a partir de livres escolhas de vida, a autora traz à baila questões que angustiam o homem pós-moderno, que se vê sem rumo, mergulhado em um vazio existencial, procurando razões que justifiquem o seu estar-no-mundo, um mundo em que estamos todos fragilizados com a perda de valores consagrados pela tradição, à deriva, presas fáceis de crenças deterministas, de visões políticas estreitas e dessa neurose de patologias de toda ordem.
A obra leva o leitor a refletir sobre esses e outros problemas que nos afligem. Reflexão que se faz premente para que reajamos diante de situações manipuladoras que promovem alienação. Desperta-nos a fim de que percebamos a importância de ir à luta, de construir nossos próprios caminhos, de rejeitar o autoritarismo em qualquer instância, da familiar a institucional. Resta-nos acrescentar também que o tempo, mola mestra que articula a narrativa de Adriana Falcão e que molda suas adoráveis personagens, se por um lado nos inclina a pensar na transitoriedade da vida, por outro nos alerta para o suceder das gerações, para a lição premente de viver cada vez mais intensa e dignamente o aqui e o agora no fluxo ininterrupto da correnteza da vida.
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