Por Krishnamurti Góes dos Anjos
O porteiro do prédio me entrega envelopes de conteúdo previsível: livros e mais livros. Retiro a insuportável máscara que devido à tal pandemia somos obrigados a usar, e entro no apartamento, ao tempo em que abro aleatoriamente um certo envelope. Vejo um volume de capa azul. Um azul da cor de céu entardecendo, sem por do sol. Na parte inferior da capa, a silhueta de um hidroavião. Observo que o autor me diz na dedicatória: “Convido-o a embarcar neste meu hidroavião”. E é então que começo uma viagem absolutamente maravilhosa.
O livro Hidroavião, escrito e publicado recentemente pela editora Patuá, do autor Alberto Bresciani, reúne 83 poemas, divididos em três partes: Água, Terra e Ar. Ainda sem a leitura do elucidativo prefácio da escritora Adriane Garcia, ponho-me a pensar nessas divisões e a fazer analogias com o título da obra e esses elementos. Um hidroavião, água, terra e ar. Tantas e tantas coisas ocorrem, desde a possibilidade de esse tipo de aeronave operar e pousar tanto em terra quanto na água, até outras bem metafóricas sobre o humano e a vida em seu caráter de eterna metamorfose. Como já li outro livro do autor, Fundamentos de ventilação e apneia, inclino-me muito fortemente para a seguinte concepção: Vida = Matéria, energia, espírito. Mas isto está ficando confuso... Vamos facilitar. Relendo a resenha do livro anterior, acho que não me engano. Reproduzo trechos porque esclarecedores:
“Sabemos
que os animais se movimentam num círculo mecânico de instintos que os
restringem a um exato determinismo; não podem e não sabem abusar como fazemos
nós. Esse o determinismo que os limita e leva-os à uma luta recíproca onde a
ferocidade se impõe, posto que a substância da qual se constitui um organismo
representa material de nutrição para outros. Daí a necessidade de instrumentos
de ataque e defesa. Nossa humanidade ainda se encontra presa ao baixo mundo da
matéria e seu determinismo puro. Estamos como num cinismo de hienas, bailando
entre bombinhas atômicas, religiosidade de retardados, racismos, genocídios e
uma fodança enlouquecida no hedonismo cruel. Está vigente o inferno sobre a
Terra. Andamos aparvalhados e esquecidíssimos de que a lei do espírito humano é
liberdade em outro sentido: por evolução, opera-se a passagem do determinismo
àquilo que verdadeiramente constitui o livre-arbítrio, e este requer, para se
regular, a direção de uma consciência superior, não necessária ao animal, mas
indispensável ao homem. É o que nos falta ainda nesse terrível momento de
transição que atravessamos.”
(...)
“Estamos vesgos de saber (mas pouco refletir em profundidade sobre) que a
energia solar, assimilada e transformada pelas plantas, torna-se, no animal,
calor e movimento e, como derradeira transformação de um dinamismo vital,
energia nervosa que, no homem, se configura no mais alto ponto da escala do
nosso universo, a máquina mais complexa e delicada. Nossa função psíquica e
espiritual. Eis onde culmina, depois de tantas transformações, a energia das
radiações solares. Aí o percurso evolutivo que insistimos em não reconhecer.”
Creio que já se percebe o que os poemas reunidos no livro Hidroavião
me fez pensar. E parece-me que o autor a
cada novo livro depura cada vez mais o seu sentir em uma direção muito próxima
do que escrevi acima. E a propósito, o posfácio da obra, escrito pela escritora
Cinthia Kriemler, nos lembra que o autor acerta a mão porque exercita “uma
escrita cuja tessitura é a honestidade. Vem daí o diálogo fluido com o leitor.
Uma conversa em versos na qual emissor e receptor se unem por meio de uma
emoção íntegra.”
Recorro mais uma vez ao texto que sobre o autor escrevi:
“Estamos
todos numa urgência íntima (daí tanto desequilíbrio e apneias em escala
planetária) que a vida comece a se libertar das cadeias desse absolutismo da
matéria, e nosso psiquismo crescente se constitua em nova causa que se
sobreponha à estabelecida pelas leis físicas. Este o pulsante respiro que a
evolução está a impor.”
Talvez, e exatamente por isto, a escritora Adriane Garcia tenha alertado lá no iniciozinho do livro: “Neste Hidroavião, Alberto Bresciani nos coloca as questões do incômodo e do cansaço”. Os poetas são mesmo as antenas da raça. Estamos todos angustiados, exaustos, fartos, com a forte sensação de que o mundo como está é in-su-por-tá-vel, e que somos mesmo “sete bilhões de prisioneiros”. Não é por outra razão que a atilada sensibilidade do autor, em seu voo panorâmico, nos leva a percorrer as mesmas trilhas “dos despossuídos, dos refugiados, dos famintos, das crianças abandonadas, armadas, mortas; as guerras. Os tsunamis, os terremotos, as deflagrações suicidas” que atormentam a todos. Precisamos definitivamente levantar voo rumo a novos horizontes (observar especialmente os poemas da parte “Ar”, sobretudo o poema “Por outro lado”). E ressoa-nos na memória um verso do poema “Alvo”: “O tempo é arma / que nos apontamos”. Vistos no conjunto da obra os poemas organizados na sugestão sequencial de Água, Terra e Ar, apontam para isto: mudança urgente e radical.
Poema “Quando não há mais o que amar” (p. 21)
Disseram-nos:
amem as bailarinas.
São
tão leves em asas, membranas.
E
logo nos damos conta
de
que se acabam em aroma.
Pois
que amem os marinheiros.
Mas
os marinheiros partem.
E,
breve, todos choram portos,
fatias
de ausência caindo ao mar.
Disseram-nos
para amar
mulheres
e homens de lata,
sílex,
farinha ou areia,
as
onças, serpentes, insetos
que
riscam barras simétricas,
cicatrizes,
grades na carne e pele.
Amem
a prata, ações, o mercado.
E
agora estamos nesse deserto,
depois
das doze provocações,
esperando,
sem esperança,
que
alguém recolha o nosso reflexo
no
caco de espelho que, parece,
neste
mundo, o céu esqueceu.
E cada leitor tire suas conclusões... Afinal, prestes a colocar o ponto em mais uma resenha, sinto-me meio reticente com o tal ponto final. Tanto poderia ser dito ainda sobre esse livro que nos fala da vida e de amor em suas tão variadas nuances... Enfim, olho pela janela e vejo o mar da baía de Todos os Santos envolto em neblina fria que anuncia ainda chuva de inverno. Nesse mesmo olhar juro que consigo ver surgir um pequeno hidroavião voando. Pilota-o o Alberto Bresciani. Sim, ele passa com sua aeronave e segue reforçando em nós a certeza de que não se pode morrer “de nenhum sonho” nesta viagem fantástica que é a vida. É justamente para isto que servem os bons livros, os livros inesquecíveis como este é.
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