25 de set. de 2020

6 poemas de Francisco Gomes

Meus olhos ácidos não mentem


Meus olhos ácidos não mentem.

As flores sempre perdem

a força bruta da beleza.

 

A suavidade agridoce

, nas coisas

, há tempos me abandonou.

Agora sou

fruto da escassez

, ciente dos experimentos ocres

  das ilusões.

 

Meus olhos ácidos não mentem.

Nossas vozes distantes

impregnam o ar de lamurialâminas.

 

A volúvel geometria

, das coisas

, já não perpassa meu olhar alquímico.

Agora sou

caçador de mitos

, desfibrando o inaudível dos abismos…

  

Ensaio sobre o inevitável isolamento

Ao som de Astor Piazzolla

, meu ser se isola
com o espectro de Anne Sexton.

Divido com o mundo a desolação de Nick Drake
, o ardor dos lábios incendiados
  num beijo de despedida.

Sei da fragilidade humana
: a necessidade involuntária de outro corpo
, de espaços
, de recíprocos.

Sei, sim, da fragilidade humana...
Por isso, contrario.
Permaneço ausência
                                , silêncio
                                              , solidão.

 

 

Insustentável


É insustentável

acompanhar o ritmo das marés

e perseguir o silêncio

em noites de prévias aventuras.

 

Seguir quilômetros e quilômetros

de areia

— púrpura ventania

     soprando o pó dos desencantos

     nas doidas e doídas têmporas

     do teu passado…

… tão presente

, de desventuras…

 

É insustentável

colher a lua

após o pôr do sol de domingo

quando os olhos já não lambem o céu

& as cicatrizes tornam-se feridas.

 

É insustentável…

 

Insustentável dar o próximo passo

diante de anjos de sal

que são diluídos

entregues à fluidez límpida

na sede

que cede

ao delirante

desejo líquido…

 

 

A flor que fito

A flor que fito

distante

no fátuo eflúvio do horizonte

                             fovismo

, sinestesia provocante-canto-de-sereia

, é abismo

: ilusão desnorteadora do tangível.

 

A flor que fito

           errante

fincada na ferida a fogo a ferro

(lágrimas de sangue e um berro)

, pela pétala de brutalidade instigante

, torna-se

  num sopro paradoxal

  singular suave bela...

Tão bela essa flor mutante!

 

A flor que fito

descomunal

habita a visceral entranha

: tamanha é a força instintiva primal

  fricção carne-carne

  afago que arranha

  fluido corporal.

 

A flor que fito

embevecida

também fede também cheira

; não é Amor

  nem flor amarela.

 

A flor que fito

nudez-mais-que-merecida

não é Vênus de Milo

; só o sonho revela...

 

 

Não quero falar do que convém aos pássaros

Não quero falar do que convém aos pássaros.

Quero falar da incerteza

pródiga

, herdeira dos ácidosdias.

 

Pretendo explorar o perímetro

que te limita ao mundo

dinamitado.

 

Meu limite é abrir valas

nas fronteiras.

 

Só o organismo debilitado

pela ebriedade das idasvindas

sabe

: sentir é um ato

que quebra a continuidade

da certeza posta

diariamente nas mesas.

 

 

Legado

O mundo em seu caos harmônico

continuará vivo pulsando futuro

e o desespero ao alcançar o toque

já não suspirará nem agredirá

a vontade voluntária do autoisolamento.

 

O mundo em seu amanhã tão esperado

irá expor as faces devastadas

: resquícios mútuos de medo

  ainda nos acompanharão de mãos dadas

  mesmo na certeza do não uso obrigatório

  de máscaras descartáveis ou personalizadas.

 

Talvez Migliaccio pensasse num mundo diferente

do mundo que pensaria Michael McClure.

Talvez não.

 

Penso

num mundo de possíveis continuidades

onde utopias continuarão utópicas

sonhos permanecerão intactos

e a tristeza estará estampada nos rostos

dos desempregados, desamparados, órfãos.

 

A Humanidade continuará Vitruviana

: sentimentos à flor da carne

  esperança que não morre

  resistência que nunca acaba. 

 

Francisco Gomes (Campo Maior–PI, 1982). Vive em Teresina–PI. É poeta e músico. Autor do CD “Diafragma – Poemas em áudio” (formato físico, 2018; formato digital, 2020). Publicou 4 livros: Poemas Cuaze Sobre Poezias (FCMC, 2011) — 1º lugar na categoria Poesia do Concurso Literário Novos Autores/2008, através da Prefeitura de Teresina —, Aos Ossos do Ofício o Ócio (Penalux, 2014), Face a Face ao Combate de Dentro (Kazuá, 2016) e O Despertar Selvagem do Azul Cavalo Domesticado (Multifoco, 2018). Edita o blog Pulso Poesia. Tem poemas publicados em revistas, coletâneas e sites. Dedica-se cotidiana e arduamente à poesia, num trabalho de pesquisa, leitura, contemplação e escrita.