Meus olhos ácidos não mentem
Meus olhos ácidos não mentem.
As flores sempre perdem
a força bruta da beleza.
A suavidade agridoce
, nas coisas
, há tempos me abandonou.
Agora sou
fruto da escassez
, ciente dos experimentos ocres
das ilusões.
Meus olhos ácidos não mentem.
Nossas vozes distantes
impregnam o ar de lamurialâminas.
A volúvel geometria
, das coisas
, já não perpassa meu olhar alquímico.
Agora sou
caçador de mitos
, desfibrando o inaudível dos abismos…
Ensaio sobre o inevitável isolamento
Ao som de Astor Piazzolla
, meu ser se isola
com o espectro de Anne Sexton.
Divido com o mundo a desolação de Nick Drake
, o ardor dos lábios incendiados
num
beijo de despedida.
Sei da fragilidade humana
: a necessidade involuntária de outro corpo
, de espaços
, de recíprocos.
Sei, sim, da fragilidade humana...
Por isso, contrario.
Permaneço ausência
, silêncio
, solidão.
Insustentável
É insustentável
acompanhar o ritmo das marés
e perseguir o silêncio
em noites de prévias aventuras.
Seguir quilômetros e quilômetros
de areia
— púrpura ventania
soprando o pó dos desencantos
nas doidas e doídas têmporas
do teu passado…
… tão presente
, de desventuras…
É insustentável
colher a lua
após o pôr do sol de domingo
quando os olhos já não lambem o céu
& as cicatrizes tornam-se feridas.
É insustentável…
Insustentável dar o próximo passo
diante de anjos de sal
que são diluídos
entregues à fluidez límpida
na sede
que cede
ao delirante
desejo líquido…
A
flor que fito
A flor que fito
distante
no
fátuo eflúvio do horizonte
— fovismo
,
sinestesia provocante-canto-de-sereia
,
é abismo
:
ilusão desnorteadora do tangível.
A
flor que fito
errante
fincada
na ferida a fogo a ferro
(lágrimas
de sangue e um berro)
,
pela pétala de brutalidade instigante
,
torna-se
num sopro paradoxal
singular suave bela...
Tão
bela essa flor mutante!
A
flor que fito
descomunal
habita
a visceral entranha
:
tamanha é a força instintiva primal
fricção carne-carne
afago que arranha
fluido corporal.
A
flor que fito
embevecida
também
fede também cheira
;
não é Amor
nem flor amarela.
A
flor que fito
—
nudez-mais-que-merecida —
não
é Vênus de Milo
;
só o sonho revela...
Não quero falar do que convém aos
pássaros
Não quero falar do que convém aos pássaros.
Quero
falar da incerteza
pródiga
,
herdeira dos ácidosdias.
Pretendo
explorar o perímetro
que te
limita ao mundo
dinamitado.
Meu
limite é abrir valas
nas
fronteiras.
Só o
organismo debilitado
pela
ebriedade das idasvindas
sabe
: sentir
é um ato
que
quebra a continuidade
da
certeza posta
diariamente
nas mesas.
Legado
O mundo em seu caos harmônico
continuará
vivo pulsando futuro
e o
desespero ao alcançar o toque
já não
suspirará nem agredirá
a vontade
voluntária do autoisolamento.
O mundo
em seu amanhã tão esperado
irá expor
as faces devastadas
:
resquícios mútuos de medo
ainda nos acompanharão de mãos dadas
mesmo na certeza do não uso obrigatório
de máscaras descartáveis ou personalizadas.
Talvez
Migliaccio pensasse num mundo diferente
do mundo
que pensaria Michael McClure.
Talvez
não.
Penso
num mundo
de possíveis continuidades
onde
utopias continuarão utópicas
sonhos
permanecerão intactos
e a
tristeza estará estampada nos rostos
dos
desempregados, desamparados, órfãos.
A
Humanidade continuará Vitruviana
:
sentimentos à flor da carne
esperança que não morre
resistência que nunca acaba.
Francisco Gomes (Campo Maior–PI, 1982). Vive em Teresina–PI. É poeta e músico. Autor do CD “Diafragma – Poemas em áudio” (formato físico, 2018; formato digital, 2020). Publicou 4 livros: Poemas Cuaze Sobre Poezias (FCMC, 2011) — 1º lugar na categoria Poesia do Concurso Literário Novos Autores/2008, através da Prefeitura de Teresina —, Aos Ossos do Ofício o Ócio (Penalux, 2014), Face a Face ao Combate de Dentro (Kazuá, 2016) e O Despertar Selvagem do Azul Cavalo Domesticado (Multifoco, 2018). Edita o blog Pulso Poesia. Tem poemas publicados em revistas, coletâneas e sites. Dedica-se cotidiana e arduamente à poesia, num trabalho de pesquisa, leitura, contemplação e escrita.