23 de ago. de 2020

Qual é o título de livro mais bonito da literatura brasileira? - Malagueta #35

 Por Sinvaldo Júnior

Criamos, aqui n’O Bule, duas questões em nossas redes sociais: uma fechada, com duas alternativas, e uma aberta, a fim de receber as opiniões dos leitores acerca dos títulos de livros mais bonitos da literatura brasileira. Sobre a enquete falarei mais à frente. Na pergunta com resposta livre, obtivemos como respostas: Perto do coração selvagem (Clarice Lispector), Sonhos tropicais (Moacyr Scliar), Um copo de cólera (Raduan Nassar), Mar absoluto (Cecília Meireles), Morangos mofados (Caio Fernando Abreu), Ave, palavra (Guimarães Rosa), entre outros títulos de autores menos conhecidos. E para você, leitor, qual o título de livro mais bonito da literatura brasileira? Aliás, é possível escolher apenas um?

Particularmente, acho os títulos das obras canônicas da literatura brasileira, em geral, muito literais e pouco atrativos, com algumas exceções, claro. Isso não é, necessariamente, um defeito. Um título literal é um título claro, que normalmente traduz muito bem o que a obra é, seja ela um livro de contos, uma novela, um romance ou uma coletânea de poemas e crônicas. No entanto, às vezes um título claro e muito literal é pouco atrativo, nada poético e, em geral, nenhum pouco comercial. A meu ver, o título ideal é justamente o que consegue equilibrar todas essas questões: atrativo, claro (tendo em vista o objetivo ou o tema da obra) e, se possível, musical (em outras palavras, poético). É pedir demais? Ah, é.

Veja, por exemplo, alguns dos títulos das obras de Machado de Assis: Ressurreição, Iaiá Garcia, Casa Velha, Quincas Borba, Dom Casmurro, Memorial de Aires, Americanas (poemas), Contos fluminenses, Papéis avulsos (contos), Histórias sem data (contos), Várias histórias (contos), Páginas recolhidas (contos), Relíquias da casa velha (contos), entre vários outros. Não parece (se levarmos em conta apenas os títulos), mas aí estão alguns dos romances e contos mais bem acabados da literatura brasileira e de língua portuguesa. Alguns, inclusive, são considerados obras-primas não só da literatura brasileira, mas da literatura mundial.

Não levando em conta o contexto histórico/social e o pensamento de época (e suas possíveis influências sobre o público-leitor), cá entre nós: com exceção de Memórias póstumas de Brás Cubas, os outros títulos de Machado não são nenhum pouco atrativos. Imagino que mesmo naquela época não eram; imagine hoje em dia. Em especial os livros de contos, a maioria – em seu título – apequena as obras-primas que lá dentro estão: Contos fluminenses? Papéis avulsos? Histórias sem data? Várias histórias? Páginas recolhidas? Relíquias da casa velha? É como se o autor pegasse qualquer coisa que tivesse na gaveta e juntasse em um livro qualquer e, sem tempo ou paciência, escolhesse um título genérico (e pouco atrativo).

Se Machado escolhesse algum conto para dar título à obra, ele teria à sua disposição títulos muito mais interessantes, como os musicais/poéticos “Miss Dollar”, “Confissões de uma viúva moça”, “Linha reta e linha curva”, “Aurora sem dia”; os enigmáticos “Teoria do medalhão”, “O anel de Polícrates”, “A Sereníssima República”, “Cantiga de esponsais”, “O cônego ou metafísica do estilo”, “Pílades e Orestes”; os atrativos “A igreja do diabo”, “Trio em lá menor”, “Pai contra mãe”; os comuns mas interessantesUm homem célebre”, “As bodas de Luís Duarte”, “Academias de Sião”; os engraçados “Capítulos dos Chapéus”, “Primas de Sapucaia”, “Fulano”, “Ideias de canário”, “Suje-se gordo!”, “Anedota do cabriolet”, entre outros.

Em Drummond as coisas (os títulos) melhoram um pouco, mas ele escorrega em algumas das suas escolhas como, por exemplo, em seu primeiro livro Alguma poesia. É nele que se encontram poemas belos e/ou famosíssimos como “Infância”, “Poema de sete faces”, “Também já fui brasileiro”, “No meio do caminho”, “Poema que aconteceu”, “Cidadezinha qualquer”, “Quadrilha”, “Papai Noel às avessas”, “Anedota búlgara”, “Balada do amor através das idades”, “Quero me casar”, “Poema da purificação”, entre outros. Ou seja, qualquer um desses poemas, ou (partes de) versos de efeito deles (“anjo torto” “gauche na vida”, “mundo mundo vasto mundo”, “no meio do caminho tinha uma pedra”, “o amor não pode esperar”) poderiam ser um título melhor do que Alguma poesia. Concorda?

No entanto, o mesmo Drummond possui alguns títulos bem atrativos, como Brejo das almas, A rosa do povo, Claro enigma, A falta que ama, As impurezas do branco. Títulos ora poéticos, ora enigmáticos. Alguns, como o último citado, criam uma imagem profunda, aparentemente antitética: as impurezas do branco? E sobre o que falar de Amar se aprende amando? Além de poético, é atrativo e de uma musicalidade interessante, conseguida especialmente pela assonância (repetição dos sons do “a”) e pela repetição de radicais de uma palavra (amar), cuja poeticidade está na própria palavra em si (cá entre nós).

Vamos pegar apenas mais um grande escritor da literatura brasileira como exemplo: Graciliano Ramos. Os títulos das suas obras, em geral, combinam perfeitamente com o assunto delas. Ademais, se ajustam com o estilo de Graciliano: claro, límpido, direto. Vejam: Caetés, São Bernardo, Angústia, Vidas secas, Insônia (contos), Infância (contos memorialísticos), etc. Para quem leu os romances e as coletâneas de contos, sabe que esses títulos não poderiam traduzir melhor suas obras. Vidas secas, segundo Rogers Silva:


Trata-se de um romance sobre a fome, sobre um mundo árido, sobre a miséria humana. Sobre personagens que quase não se comunicam entre si, embora seja uma família. Sendo assim, não faria muito sentido uma linguagem rebuscada, saturada de adjetivos, colorida. Ao contrário, Vidas secas é de uma linguagem concisa, sequíssima, com diálogos rápidos e precisos. A linguagem, aí, está a serviço da história, a fim de criar um mundo sem amor, sem comunicação, destituído de alegrias e colorido.

Fonte: Tenha domínio dos recursos artísticos e linguísticos disponíveis/Rogers Silva. O Bule, 2020. Disponível em: http://www.obule.com.br/2020/07/a-arte-de-escrever-narrativas-1.html Acesso em: 19 de ago. de 2020.

Mas reflitamos... São títulos que obedecem àqueles três critérios levantados no início deste texto: atrativo, claro (tendo em vista o objetivo ou o tema da obra) e, se possível, musical (em outras palavras, poético)? A meu ver, não. Todos são claríssimos; alguns são atrativos; poucos títulos de Graciliano Ramos são musicais ou poéticos, com exceção talvez de A terra dos meninos pelados (infantil), Brandão entre o mar e o amor (romance coletivo) e Memórias do cárcere.

Tudo isso faz esses escritores menores do que eles são? De forma alguma. Todos os três são monumentos da literatura brasileira, apesar de muitos títulos de suas (algumas grandes) obras não serem muito atrativos, sobretudo para um iniciante à leitura ou um jovem. Ou seja, o título pode, a meu ver, derrubar barreiras quando bem escolhido ou, ao contrário, frustrar o leitor, quando bonito mas mal escolhido por não suprir a expectativa de quem lê. Lembra da questão fechada criada com duas opções aqui n’O Bule? Então, as opções eram Amar, verbo intransitivo, de Mario de Andrade, e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Por incrível que pareça, o resultado deu empate: a metade dos respondentes considera o título de Mario e a outra metade o de Rosa o título mais bonito.

Os dois são lindíssimos. Compreendo o empate. É muito difícil escolher um deles. No entanto, se fizermos uma análise mais aprofundada e relacionarmos o título com a obra, um deles ganha a parada, na minha opinião. Amar, verbo intransitivo, embora um excelente título (claro, poético, atrativo e, de alguma forma, traduz o assunto da obra), é mais do que a própria narrativa. Explico: o romance de Mario de Andrade é ruim? Não. É excelente? Também não. Fica entre mediano e bom (eu o considero bom). A impressão que eu tenho é que Mario deveria ter guardado o título Amar, verbo intransitivo para uma obra maior acerca do mesmo assunto (obra, inclusive, que ele nunca escreveu).

Por outro lado, Grande sertão: veredas é um título grande para uma obra enorme, em seus sentidos metafóricos. Ou seja, trata-se de um título límpido (embora possa ser interpretado também metaforicamente), poético e, a meu ver, atrativo. “Veredas”, por sua vez, estabelece uma espécie de relação de antonímia e de proporção à “grande sertão”, uma vez que veredas pode significar um caminho estreito, uma senda dentro de um espaço grandioso, a perder de vista. A pausa criada pelos dois pontos, a meu ver, é o que mais proporciona musicalidade ao título; depois, a assonância produzida pela repetição dos quatro “e”. Ademais, em todas as palavras do título há as letras “a”, “e” e “r”, outra causa da famigerada musicalidade.

O título da obra maior de Guimarães Rosa não só traduz uma das maiores obras da literatura brasileira, mas carrega em si muita poesia/musicalidade, muitas imagens e é atrativo. É por isso que meu voto vai para Grande sertão: veredas. E o seu?