Por Allyne Fiorentino
Vendo sofá. Tudo que eu queria era vender um sofá. Não estava caro, estava até bem baratinho, porque sei como as coisas caras se arrastam para ser vendidas pelas redes sociais. O maldito botão de “guardar para ver depois” permitia que as pessoas procurassem outros móveis mais baratos enquanto guardavam seu anúncio para mais tarde. Ser empurrado para mais tarde é uma sensação amarga de abandono, uma incerteza que eu queria evitar.
Confesso que quando postei fiquei com medo de cair no conto do meme. Aquele meme em que mostram uma pessoa anunciando e outras fazendo perguntas cujas respostas já estão claramente descritas no texto do anúncio. Não! Eu não caio nessa! Vou ser o mais clara possível e colocar todas as informações, vou fazer uma espécie de “análise do público-alvo” e prever as “restrições”, quase um processo de “prototipagem” do meu anúncio. Escrevi: Vendo sofá. Preço: 300 reais. Não entrego. Moro no Bairro do Grito. Por fim, coloquei uma foto.
Demorou um pouco, mas eu recebi a primeira mensagem: “onde você mora?” Fiquei uns segundos parada raciocinando... Não pode ser! Já entrei no processo de memeficação. Abri meu anúncio de novo pra ter certeza de que eu tinha escrito onde morava. Sim, fatidicamente estava escrito. Agora, se eu quisesse mesmo vender o sofá teria de passar por cima do meu deboche e segurar meus ímpetos de professora de dizer: você leu o anúncio?
Moro no Bairro do Grito. Escrevi novamente. Depois de romper a cerca com a primeira pergunta, outras manadas de perguntas foram chegando e eu comecei a me animar com a possibilidade de vender rápido: “você entrega?” Com variações de “você não entrega?”, “tem como entregar?”, “tem como entregar, não?”. Em dado momento chegavam algumas diferentes: “manda uma foto”, “qual o valor?”, eu já estava esperando que chegasse a pergunta: “é um sofá?” ou “esse sofá voa?”, nada parecia absurdo a essa altura.
Inconformada com a minha impotência comunicativa, voltava sempre ao anúncio na esperança de achar a causa no texto. Tudo nesse mundo poderia me trair, mas não as palavras que eu escrevi, que eu curei.
Sofá. Trezentos. Entrega. Bairro.
Sofá. Trezentos. Entrega. Bairro.
Sofá. Trezentos. Entrega. Bairro.
Palavras mais simplórias era impossível encontrar. E pensar que eu que cultivo a esperança de me fazer entender com palavras como câmara, impeachment, congresso, imparcialidade, processo, inimputável, mais-valia, regulação. Eu tenho (ou tinha) a plena certeza de que qualquer um é capaz de entender um discurso tão claro quanto o meu! E o mundo todo que agora gritava aos quatros cantos e de maneira quase opressiva palavras ainda mais ininteligíveis para essa massa: criptomoeda, analógico, digital, robótica, ubíquo.
Uma das mensagens tinha apenas uma palavra. Estava escrita de uma forma que eu não pude deduzir o que significava, mas sem pensar muito e depois de responder tantas vezes as mesmas perguntas, copiei a explicação dada a outras pessoas e colei nessa conversa. De repente chega um áudio: “você pode mandar em áudio? Eu não sei ler”.
Fiquei surpresa. Alcancei uma camada de sociedade muito longínqua pra mim, daquelas que só imaginamos nas estatísticas e que nos afasta dessa culpa palavrória de 500 anos que eu senti. Mandei prontamente um áudio, com muita pressa, com voz embargada, talvez... mas com muito respeito.
Eu queria ardentemente falar as palavras: Exploração. Proletariado. Educação. Democracia. Oportunidade. Equidade.
Mas para aquela pessoa que já vivia o amargo sabor de ser empurrada para mais tarde na sociedade, para ela que vivia num mar de palavras tecnológicas, mas não experimentou nem a descoberta do lápis feito de madeira e carbono, eu só podia dizer: Sofá. Trezentos. Entrega. Bairro.