Por Ricardo Novais
Numa certa
manhã, João Lebre acordou aborrecido. Olhou para a escrivaninha velha, o
computador velho, as letras velhas e respirou fundo. Mal se vestiu e precisou
ir à rua, caçar ar puro, gente outra, ideias novas. Dobrou a esquina, viu muita
coisa velha na nova gente. Sempre a mesma agitação. Lebre parou alguns instantes,
pensou em tornar ao lar, entretanto, dispôs-se a andar, aumentou o passo,
atravessou outra calçada, andou, andou, andou e chegou à frente de sua própria
casa.
__ Que
acontece, João?
João respirou
fundo, novamente. A esposa nada entendia; os filhos, pequenos, menos
ainda.
__ Tenho que
escrever... – Lebre disse isto e trancou-se no escritório às pressas.
Pegou do
cigarro, acendeu-o, mas não tragou dele. Não fumava. A fumaça rapidamente tomou
conta do ambiente. Deixou pousar as costas à cadeira bege, iniciou uma homilia
mental em conjunto com uma observação de memória recente. Abriu uma garrafa de
uísque barato...
Havia ali uma
grande biblioteca na casa, naquele compartimento, herança do pai. Os livros,
quietos, olhavam para o escritor, e este retribuía. A coleção de obras-primas
de autores clássicos continha Flaubert, Eça, Eco, Rosa, Dostoievski, Tolstói,
Kafka, Machado, alguns outros mais recentes, outros ainda mais antigos. Há uns
jogados ao pé da estante, livros de diferentes tamanhos, cuidadosamente
organizados como títulos de nobreza. Um exemplar da grande literatura ficava
exposto em mesa central: Em Busca do
Tempo Perdido, do romancista Proust. A esta altura era este autor francês o
que mais lhe chamava a atenção e mais repreendia os seus modos de escrita e as
suas preferências de criação literária.
João Lebre
escrevia textos do que a crítica se especializou em chamar de autoajuda, embora
também tenha se aventurado pela ficção juvenil. A subsistência ficou a cargo da
gorda pensão que a mãe deixara, sempre foi filho único. É verdade que também tenha
figurado como professor, por recreação; e, naturalmente, escritor, por vaidade.
Editores medíocres o publicaram, revistas on-line listaram suas pequenas obras e
as livrarias das redes sociais expuseram seus livros. Poder-se-ia dizer-se
bem-sucedido.
No entanto, o
escritor sentia em suas entranhas a necessidade de volumosa criação literária. Ansiava,
com dor estomacal, adentrar ao rol de maiores literatos do mundo, reservar a
cadeira escura de onde pudesse tomar chazinho das cinco da tarde. Perceba,
senhor leitor, aí é que estava toda aflição e desgosto do autor que sonhava em
ser célebre, ser um grande literato, celebrado, renomado nos grandes salões
letrados.
Tinha ele de
retornar àquela sala, sob a escrivaninha e a tela onde deveria preencher as
linhas, exatamente para forjar um método de trabalho: a metodologia da criação.
__ Preciso que
esta parede seja pintada de branco, impecavelmente branca, toda branca, branca,
branca... – esbravejou ele em meio da afetação. – Não há de ter uma manchinha
sequer; nenhuma! Uma parede alva, clara, brilhante que me traga ideias
brilhantes... Isto! Terei sim aspirações brilhantes, divinas... Voilà!
Assim foi.
Pintou-se toda de branco a parede lateral, que fica de frente para a velha
escrivaninha. No primeiro dia, porém, nada. Não que as ideias não viessem;
vieram. Lebre chegou as escrever quase vinte páginas de prólogo, mas não foram
boas... Quando resolveu descansar um pouco da escrita, resolveu também ler o
escrito; fez ele mal nisto.
Ao terminar de
ler as vinte linhas, o escritor percebeu que os mesmos livros o fitavam, do
mesmo lugar. De modo que os autores clássicos foram mais claros do que a parede
alva recém pintada:
__ Não está
bom, João! – foi a sentença.
Proust foi
ainda mais enfático:
__ Está uma
porcaria, meu amigo da América! Escreva coisa melhor para não ser confundido
com algum selvagem ou qualquer homem que pega da pena....
A depressão o
engoliu. Fez a mesma rotina de algumas semanas. Saiu à rua, andou, viu gente
nova e coisas velhas, tomou ar às ventas, a fumaça preta da cidade grande o fez
tossir no âmago.
E você, hein,
amigo leitor que meramente lê, não valoriza os esforços incríveis do processo
criativo de um homem letrado? Oh, não! A dona leitora, que não tem mesmo um
gênio fácil, já vem exclamando: “Ah, me poupe! Quanta doidice!”
O escritor
retomou à escrita e escreveu uma única palavra, em fonte Arial: Nada. Escreveu
e não escreveu... Nada! Mudou o tamanho e a fonte das letras, mas foi um fracasso
comovente.
Então que
alcançou a maior bizarrice de sua metodologia da criação. Retirou toda a roupa,
ficou nu em pelo na escrivaninha com o ar-condicionado ligado na mais baixa
temperatura; por certo, para ter ideias frescas. A esposa entrou de surpresa e
o surpreendeu nesta esquisitice e se escandalizou:
__ Que isto,
João? Que gelo é este, João? Vai ficar doente pelado neste frio.
Ao invés de
ideias arejadas, ao final de uma semana o escritor estava com pneumonia; e as
ideias frescas que, porventura, ele possa ter conseguido, derreteram assim que se
abriu a janela e adentrou o primeiro raio de sol.
João Lebre, magnífico intelectual desta terra de literatos, morreu naquela mesma noite, às dez horas e cinco xícaras de chá. Proust, ao saber da morte do brilhante escritor brasileiro, pousou a mão esquerda ao queixo, sacudiu, sutilmente, a cabeça três vezes, ergueu à meia altura uma xícara de café e disse, em baixo tom, no meio da biblioteca da escrivaninha: “Aos esnobes e aos amadores”.