Por Milton
Rezende
Eu
sou trezentos, sou trezentos e cinquenta,
Mas
um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos
paciência, andorinhas curtas,
Só
o esquecimento é que condensa,
E
então minha alma servirá de abrigo.
MÁRIO DE ANDRADE
Acabei de ler o romance EntreMeios, de Cassia Penteado, acho que por umas duas ou três vezes em uma única vez. Explico-me: foi uma leitura feita de idas e vindas. Recapitulações. Tentando lançar luzes sobre alguma passagem anteriormente lida e não totalmente absorvida, e este foi um processo enriquecedor. Fiz com este livro uma leitura sui generis: antes de eu terminar eu recomeçava e lá pelas tantas iniciava tudo de novo, mas mantendo as pontas do início e do desfecho afinal cíclico.
Não quer dizer com isso que seja um livro de leitura difícil, mas requer perspicácia e a vontade de continuar lendo e continuar sorvendo tudo porque trata-se de uma prosa poética, ou melhor, verdadeira poesia em prosa – deliciosa e vermelha.
Saí deste livro de estreia com uma palavra formulada nos desvãos do meu cérebro já antigo e que ainda gosta de se expressar com palavras em desuso justamente quando requer e precisa de um termo forte para anunciar algo novo e inovador. Uma estreia deveras alvissareira.
Há que se ressaltar neste livro, publicado pela Editora Reformatório, seu caráter bastante diferenciado e promissor, bem como enaltecer esta nova autora, Cassia Penteado, que publica seu primeiro romance e promete. Literatura concisa, cheia de frases como lâminas afiadas da faca de sashimi, “que permite um corte perfeito com um único golpe”. Lâmina limpa antes de ser usada. Impressionante.
Dir-se-ia que é um romance duro, cruel, mas simultaneamente límpido e doce, como aquele personagem singelo que vai enrolando o seu cigarro de palha, numa passagem da mais pura magia: “ele desembrulha um pedaço de tabaco torcido e enrolado em corda. Do bolso da calça fina de tergal cinza, ele traz o canivete de aço inox com detalhes em madrepérola; era ainda menino quando o herdara do avô. Com ele fere e descama o fumo que armazena na palma da mão, depois o despeja na folha de palha, enrola-a na superfície da ponta dos dedos, leva à boca aquela gaita de palha recheada de tabaco picado, lambe a borda da folha com a ponta da língua e, com a saliva, cola-a no corpo do cigarro, encerrando a obra”.
Procedimento simples e poético que contrasta com os muitos coágulos de sangue que virá antes e depois, em profusão, no cérebro emaranhado de traumas e pesadelos e culpas da personagem principal. Ou seriam duas personagens mulheres? Ou apenas uma, a mesma? É preciso ler o Entremeios para saber.
Numa passagem inóspita e realista a personagem se questiona: “extirpar o útero de mulher que jamais parira? Sou chão batido em que a semente não germina, sou árvore maldita que não deu fruto, aguilhoada pela ardência da devassidão da infertilidade. O destino poupara-me a desgraça de gerar víboras, de ter, nas palmas, o enxerto fecundo de outra anomalia a perpetuar minha vileza. Jamais desejei reproduzir algo que não partisse de meu cérebro, dos meus sentidos, e a vida secou inopinadamente as minhas entranhas”.
Um romance feito de fendas e camuflagens e com a capa vermelha como glóbulos de sangue, muito sangue. Afinal havia um buril. Sim, um buril.
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