19 de jul. de 2020

Uma picanha mal passada na pandemia

Por Ricardo Novais

Passava das onze e meia da noite. As ruas vazias, a noite era típica de um inverno paulistano. Eu fui jantar no meu restaurante preferido depois de quatro meses e meio.

O decreto de isolamento social por causa da pandemia do coronavírus ainda estava valendo, havia restrições de horários de abertura e fechamento dos estabelecimentos comerciais. Não podia ter aglomeração e o uso de máscara de proteção facial era obrigatório, mediante multa aplicada pelos fiscais da prefeitura em caso de descumprimento.

No meu restaurante favorito, eu era chegado dos garçons; só não ia com a cara de um dos gerentes do lugar que era apoiador do governo. O Amorim, um dos garçons mais clássicos da zona sul paulistana, quando me viu abriu um sorrisão e já me colocou pra dentro do salão do restaurante. Apesar do tempo sem ir lá, eu mantinha uma mesa cativa, reservada para mim.

O lugar estava vazio, exceto por dois ou três bêbados numa mesa distante, havia álcool em gel em todo canto e eu permaneci de máscara, que só retirei para comer uma suculenta picanha Matogrosso.

Dizem que saudade é uma palavra que só existe no idioma português e é um sentimento difícil de definir. Em meio a uma pandemia, acredito que saudade signifique comer uma picanha mal passada no seu restaurante preferido.

Mas o leitor, que, por certo, sempre teve todos os cuidados preventivos de saúde e higiene e que também permaneceu em isolamento social por meses, deve estar a balançar a cabeça, em desaprovação por esta minha furada à quarentena. Não digo que foi certo, nem que foi errado. Não digo porque foi uma questão de necessidade; senão física, psíquica: quatro meses e meio de isolamento.

De todo modo, o mal menor não foi ter ido ao restaurante, de portas fechadas, em pleno vazio de alma da cidade. O meu grande erro naquela noite foi a vaidade, postei a minha escapada da quarentena nas redes sociais.

Em cinco minutos, o Amorim apareceu com uma cerveja gelada, uma fogazza e uma bronca:

__ Porra, Toninhoooo! Meu! Você postou foto que está aqui?

__ Que que tem, Amorim? Só tá a gente aqui, porra! Não vai vir fiscal!

__ Olha, meu, isso é de um puta egoísmo e de uma irresponsabilidade do caralho! Você está vendo o tanto de gente que tá morrendo e fica postando foto que está saindo, bicho?! Depois fala do governo...

Doeu muito ouvir o Amorim dizer que eu era egoísta e irresponsável. Nunca fui egoísta, sempre tive um coração de ajudar todo mundo. Irresponsável? Já fui mais, mas o governo que tinha autorizado as pessoas a saírem de casa, mesmo com as restrições de saúde. As autoridades tinham muito mais responsabilidade se a doença se espalhar ainda mais no país do que eu.

__ Me vê a conta aí, vai, Amorim. Vou pra casa.

Paguei a conta, coloquei a máscara e saí do restaurante. Não apaguei a postagem na rede social. Primeiro que postei a foto por vaidade e não para incentivar alguém a sair de casa. E também mantive a foto por questão de transparência, pois sei que a querida leitora, que me lê agora quase como uma fiscal da pandemia, diria que nada adianta pregar uma coisa e fazer outra. Era quase um álibi em um eventual julgamento de rede social.

Andando pelo bairro, no pé da zona sul, fui refletindo até o meu prédio no que o Amorim disse. Subindo o elevador, sozinho, fiquei olhando a minha fisionomia mascarada no espelho.

Já estava de volta à solidão de casa. Abri uma cerveja e sentei no sofá. Por culpa do Amorim, passei a noite refletindo se no dia seguinte seguiria com os meus planos de dar um rolezinho no centro da cidade; eu queria ir na Galeria do Rock e depois passar no meu bar preferido para matar a saudade do chope gelado e de queridos amigos. Afinal, eu já estava há quase cinco meses sem sair de casa.