20 de jul. de 2020

Qual é o autor mais universal da literatura brasileira? – Malagueta #33

Por Sinvaldo Júnior

Este é o título de uma enquete – despretensiosa – que decidimos criar, dias atrás, em nossas mídias sociais. Disponível durante uma semana, a enquete não teve, claro, nenhuma pretensão científica ou estatística. Era só uma curiosidade para, a partir disso, discorrer sobre a questão: afinal, qual é o autor mais universal da literatura brasileira? Aliás, o que é universal? – pergunta que, por si só, praticamente anula a questão e suas respostas, porque: 1) alguns podem ter interpretado universal como universalizado, ou seja, o autor mais conhecido fora do Brasil; e 2) outros, por sua vez, podem ter interpretado universal como a capacidade que o autor possui de tratar de temas sensíveis a qualquer lugar ou época. É este último conceito que aqui importa.

Mas, antes, voltemos à enquete... As quatro opções oferecidas (outro limite à pretensão científica) e os resultados foram os seguintes:

 

Machado de Assis

36 votos

Clarice Lispector

14 votos

Carlos Drummond de Andrade

12 votos

Guimarães Rosa

5 votos

O que equivale, em termos de proporção, ao gráfico abaixo:


A partir desse resultado, pude fazer algumas inferências: 

  1. Possivelmente, Machado de Assis é o autor mais lido e aquele visto, por nós, como o mais conhecido pelos estrangeiros;
  2. Clarice Lispector é mais conhecida e lida do que podem supor alguns críticos de sua obra que a consideram densa e “difícil” (com exceção, claro, da sua última obra, A hora da estrela);
  3. Poesia não parece ser um gênero tão apreciado hoje em dia, visto que Drummond – o poeta brasileiro mais conhecido, aqui e lá fora, hoje e desde que surgiu sua primeira obra, em 1930 – ficou apenas com o terceiro lugar e com um terço dos votos de Machado de Assis;
  4. Guimarães Rosa não parece ser um autor tão lido e apreciado pelo leitor médio e, até mesmo, pelos especialistas, como professores, críticos e jornalistas.

Essas – é preciso deixar bem claro – são impressões minhas, suscitadas a partir da análise do resultado dessa enquete despretensiosíssima. Não são verdades absolutas.

Quanto a Machado ser o autor mais lido e conhecido, tanto por brasileiros quanto por estrangeiros, é meio que unanimidade. Dificilmente alguém duvida desse fato. Inclusive, algumas matérias bem atuais celebram o fato de Machado de Assis estar sendo (re)descoberto por falantes da língua inglesa por conta de algumas traduções novinhas em folha.

Quanto à Clarice ser mais conhecida do que alguns podem supor, creio que – se for verdade – é uma surpresa para muitos, embora – creio – não para os editores e especialistas em literatura. Clarice sempre foi muito lida e celebrada, desde sua primeira obra até hoje em dia, apesar de sua prosa diferentona e (por causa) das reiteradas epifanias de suas personagens.

Assim como Machado de Assis na prosa, Drummond é outra unanimidade, só que na poesia. Poucos são os que contrariam a opinião de que ele é o maior poeta brasileiro e um dos maiores poetas da língua portuguesa, junto com Fernando Pessoa e Camões. O fato é que, hoje em dia, parece que a leitura de poesia está em desuso. Em tempos de proliferação de notícias e não-notícias, informações e fake news, com textos cada vez mais fluídos, rápidos, simplórios, às vezes apelativos e conspiratórios, a poesia – por ser um gênero que exige muito do leitor – talvez não esteja muito em voga.

Guimarães Rosa é um autor à parte. É um acontecimento. Nunca houve e (ainda) não surgiu outro escritor brasileiro que beira a sua capacidade de transcriação linguística. Há uma língua portuguesa, conhecida por todos os seus falantes, sejam do Brasil, de Portugal ou de Guiné-Bissau. E há outra língua portuguesa, criada por Guimarães Rosa. Isso, por si só, afasta bastante os leitores médios da sua literatura. Afasta, na verdade, até alguns especialistas (professores, críticos, jornalistas culturais, escritores, etc.). Guimarães é meio que James Joyce – todo mundo já ouviu falar, todo mundo sabe que é gênio, mas pouquíssimos os leram. Apenas cinco (5) pessoas de sessenta e sete (67) votarem nele, mesmo que numa enquete tão sem pretensões, diz muita coisa em suas entrelinhas...

E já que o texto é meu, agora vou dar minha opinião sobre a questão levantada no título (o que não impede, caro leitor, de também enviar sua opinião para o nosso e-mail ou deixá-la nos comentários. Ou, até mesmo, enviar um texto para O Bule sobre o assunto). Mas, antes, é necessário fazer algumas ressalvas: dos quatro autores, considero conhecer bem Machado de Assis (li todos os romances – alguns duas ou três vezes – e boa parte dos seus contos) e Drummond (sou pesquisador de sua obra e biografia); conheço – diria – parcialmente a obra de Clarice e Guimarães Rosa, portanto, não me considero um especialista em suas obras. Ou seja, é uma opinião enviesada, como todas as opiniões. Feitas as ressalvas, considero Drummond o escritor mais universal da literatura brasileira. Ponto. Ponto nada! Explico...

Primeiro, estou aqui considerando “universal” aquela capacidade de um escritor em abordar temas diversos, aceitos e sensíveis a várias gerações, épocas e lugares, e utilizar diversamente os recursos disponíveis à sua época (não podemos esquecer que literatura é a artes de usar as palavras, e a linguagem verbal escrita – consequência da junção coesa e coerente entre as palavras – é a ferramenta única da literatura). Assim sendo, Drummond é o autor que discorreu, literariamente, sobre quase todos os assuntos (aí há um pouquinho de exagero, ok) de diversas formas, tendo em vista os gêneros poema, crônica e conto, praticados por ele.

Entre rimas e versos brancos, em apenas uma obra (peguemos a complexa e riquíssima A rosa do povo) Drummond trata de poesia, de literatura, de artes, da guerra, de medo, do seu tempo presente, do passado, da passagem do tempo, do amor, do amanhã, dos párias, da condição humana, do Brasil, do mundo, de esperança. Se considerarmos as mais de cinquenta obras, de prosa e poesia, precisaremos multiplicar esses temas, e o resultado beira a completude temática. Abra Drummond em qualquer livro, Alguma poesia (1930) ou Farewell (1996), e lá – na página aberta – você se identificará, apesar da distância temporal entre sua vida e suas emoções e a voz do eu lírico contemplado.

Drummond, lá nas décadas de 1930 e 1940, já havia falado sobre o mundo e o Brasil de 2020. Duvida? Eis um exemplo:


Elegia 1938


Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,

onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo. 

Praticas laboriosamente os gestos universais,

sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

 

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,

e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção. 

À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze

ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

 

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra

e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer. 

Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina

e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

 

Caminhas entre mortos e com eles conversas

sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito. 

A literatura estragou tuas melhores horas de amor.

Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

 

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota

e adiar para outro século a felicidade coletiva. 

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição

porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.


De forma alguma quero diminuir a importância e a universalidade de Machado, Clarice e Guimarães Rosa, mas – para mim – Drummond é o escritor mais universal da literatura brasileira.