A literatura é a
boia dos desesperados, quem escreve tem que aprender sobre os escafandristas,
tem que conseguir enxergar os peixes abissais sem perder o rumo. Renato Tardivo
aceitou esse desafio, teve coragem de vasculhar esse lugar de seres dementes,
de seres marginais, de rostos insólitos. De todas as narrativas, considero o
conto um dos gêneros mais difíceis, talvez ele só perca para a poesia. É uma
ilusão acreditar que por se tratar de um texto curto ele exija menos do autor,
eu diria o contrário disso, é preciso sintetizar, cortar o inútil para que o imprescindível
venha à tona, sair do abismo profundo e encontrar a superfície, onde flutuam as
vitórias-régias. Isso não é uma tarefa fácil, sintetizar não significa ser
breve, mas usar poucas palavras para fazer um universo respirar, sacudir, gemer.
Lendo o livro de
contos Silente experimentei na pele
uma das definições que mais gosto de Cortázar sobre o gênero contos. Cortázar diz
que enquanto o romance ganha por pontos, o conto ganha por nocaute. Foi assim
que me senti ao longo da leitura, sendo constantemente nocauteada. Nenhum
leitor poderá sair ileso, sem hematomas depois do contato com as palavras de
Tardivo. O autor sabe como se mover dentro da estrutura do conto, não peca por
excesso, nem é breve a ponto de deixar os leitores decepcionados, seus contos
são muito bem amarrados e apesar de ser um autor novo podemos ver que não é
inexperiente, ele sabe manejar muito bem a sua matéria-prima, ainda que se trate
de uma matéria porosa, aerada.
Eu me arrisco a
dizer que esse escritor tem um apego às circularidades do tempo, poderia
afirmar que suas narrativas são enrodilhadas, uma narrativa-oroboro e por
vezes, temos a impressão de apreendê-la, no entanto, na próxima linha
percebemos que fomos mordidos no rabo pela cobra de nossa ignorância, de nossa
pretensão.
A narrativa de
Tardivo é um retrato do homem, não diria que é um retrato do homem
contemporâneo, mas dessa espécie de homem universal que atravessa todas as
épocas, é o retrato dessa alma ancestral, primata, dessa ânsia humana que não
passa com o tempo, apenas modifica de circunstância. O mesmo homem-tédio que nas
cavernas manejava a pedra e agora maneja o computador.
Encontramos em Silente um flâneur, não um observador
externo das ruas, mas alguém que olha os becos, os esgotos humanos, um flâneur
íntimo. As suas descrições não são do fora (mesmo quando se trata de mostrar
objetos ou cenários), suas descrições são obscenas, eu diria que Tardivo é um
anatomista da alma humana e ao longo dos seus contos tomamos nota das
nomenclaturas da solidão humana, ele disseca a angústia e nos devolve um quadro
desesperador.
Renato não é um
autor pronto, porque nenhum autor jamais está pronto, todo escritor é um
protótipo, uma máquina experimental, jamais está formado, nunca está a salvo,
situa-se entre a emersão e o afogamento, o autor é o próprio devir e é isso que
faz dele um ser especial.
O que mais posso
dizer sobre essa escritura de desespero? Posso apenas deixar uma alerta ao
leitor: se você não está disposto a mergulhar esse livro não é para você, esse
livro é para os que têm coragem para o salto mortal.