7 de jan. de 2013

Há um brilho de faca

Por Daniel Lopes

“eu sei que o amor é bom demais, mas dói demais sentir”
Dalto             

Acorrentado. Amar sem ser amado. Ou será que eu era? Já faz tempo. Hoje achei uma fotografia dela sorrindo. Já faz tempo. Vinte anos hoje. Sei porque é a data do meu aniversário. Eu faço trinta e sete. Fazia dezessete. Detesto os nostálgicos, ainda que seja um deles. Se pudesse construiria uma casa no passado e ficaria morando por lá, junto à piranha que amei. Não que o passado tenha sido bom, não era, já disse que odeio os nostálgicos. Em verdade, em verdade vos digo que o passado era uma merda, mas o problema é que o presente é vazio. E, entre a merda e o vazio, fico com a merda. Paixão é sofrer junto, mas eu sofria sozinho, eu sofro sozinho, com tudo o que tinha de ruim, aqueles foram os melhores dias do meu coração remendado com veias de porco. Falando sério, tenho é inveja desses filhos da puta que arrumam uma dúzia de piranhas pela vida a fora e não se envolvem com nenhuma. Analisam friamente custo e benefício e, como o custo quase nunca compensa o benefício, caem fora e não sofrem. Eu só gostei de uma mulher. E como sou mesmo um filho da puta muito azarado, foi logo de uma puta. Essa não é uma história romântica. E a minha puta não é dessas que choram e têm histórias tristes pra contar, não. A minha puta gostava mesmo era de dinheiro e só de dinheiro. Bem que eu queria que ela gostasse de qualquer outra coisa, mas ela gostava mesmo era de dinheiro.
Estávamos comemorando meu aniversário. Eu e mais dois parceiros. Fomos ao puteiro e ela estava lá.Vocês acreditam em amor à primeira vista? Eu sei, acontece o tempo todo. Eu só preciso de uma ajudinha dos meus amigos. Não vou dizer que tenha sido amor à primeira vista. Antes foi amor à primeira foda. Como tínhamos dinheiro, ela deu logo conta dos três. Tinha uma boceta de fogo. Era impressionante, como conseguia ficar excitada o tempo todo, se visse dinheiro aí então é que transformava mesmo a xota num rio. Eu não posso explicar porque foi que me apaixonei, porque foi que fiquei tão louco. Eu mesmo não sei dizer. Aliás, só escrevo pra tentar desvendar. Ela não era a mulher mais linda do mundo. Não era a mulher mais inteligente do mundo. Não era sequer a mais gente fina do mundo, era uma egoísta, insensível. Não insensível não, porque ela pintava uns quadros. Não sei como eles eram, os quadros, ela nunca me mostrou um deles sequer. De qualquer forma pintava e isso já é alguma coisa, nénão?
Sei que, depois do primeiro dia, eu não conseguia mais parar de ir lá. Ela não falava muito, só fodia. Diabos, havia um mistério e eu precisava decifrar. Acho que tinha lido contos de fadas demais e ficava o tempo todo fantasiando. Ficção e realidade me eram iguais. Eu achava que tinha que me foder um pouco, porque queria ser escritor e todos os escritores se fodiam. É a vida. Mas aí, não devemos brincar com essas coisas. É como brincar de fazer pacto com o diabo, no fim você pode se dar muito mal. Ela não fazia questão de esconder que só queria meu dinheiro e, se viesse a calhar, se divertir um pouco. O problema foi que fiquei obcecado. Perdi todo o meu dinheiro e meu orgulho. Perdi o amor e o respeito de todos que gostavam de mim. Já fumei crack e já cheirei heroína, não posso dizer que apliquei porque sempre tive medo de agulhas. De qualquer forma, já usei drogas bem pesadas e posso dizer que nada me destruiu mais do que aquela mulher. Eu tinha de decifrar o mistério, mas talvez nem sequer houvesse mistério algum, talvez ela fosse uma filha da puta egoísta mesmo. Mas eu cismei que existia um mistério e dentro dele qualquer coisa de ternura. Ternura? Ternura é passar pomada no cu arrebentado da piranha amada depois de uma noite de trabalho. Há que ser delicado e cuidar das pregas como se fossem pétalas de rosa. Como dói. Nos dois. É dor que nenhuma substância química, nenhuma religião, nenhum amigo pode apagar. No fim de tudo ela ria alto e perguntava quanto eu ainda tinha nos bolsos. “Só isso? com esse dinheiro eu só posso te bater uma punhetinha, estou exausta.” E aí ria de novo e pegava meu pau com a mão e só o jeito dela pegar no meu pau, me olhando nos olhos, eu não resistia e gozava rápido. Conversa de apóstolo, aquela idéia de que o amor é bom e não quer o mal. Tem amor de tudo quanto é jeito. Se ele quiser o bem, o amor, sorte do indivíduo. Se quiser o mal, azar do sujeito. Um peixe bem fisgado não escapa do anzol.
Um amigo me disse que  só perdi o controle assim porque sou adotado e meu pai era um bêbado que ficava jogando isso na minha cara o tempo inteiro:
- Eu devia ter deixado esse traste pra morrer em cima do formigueiro. Não sei porque fui tirar esse calhorda de cima daquele formigueiro. Devia ter deixado as formigas acabarem com ele - ficava gritando sempre que enchia a cara.
Minha mãe era boa, mas entrava na porrada também, quando o velho chegava muito doido. Um dia eu cresci e meti a foice na cabeça dele. Ficou mais de um mês internado. Foi bom pra ele aprender uma coisa. Hoje ele está lá, todo fodido em cima da cama. Precisa de alguém que lhe limpe o cu. E eu estou aqui, também não posso dizer que esteja melhor que ele, aqui nessa clínica, com medo de sair na rua e de pegar em dinheiro... Mas também não quero falar disso. Eu preciso é desvendar a puta. Até hoje aquilo tudo me atormenta.
- Isso é espírito de pomba-gira – minha mãe sentenciou logo da primeira vez que a viu. Era uma mulher muito ligada às coisas espirituais, minha mãe. Jamais entenderia uma mulher como aquela que eu amava. Tentei várias vezes, mas não consegui me desvencilhar dela... até que ela morreu. Graças a Deus! Morreu de AIDS, não faz tanto tempo, e ainda riu na minha cara porque a gente tinha trepado uma porrada de vezes sem camisinha. Queria mesmo me destruir eu sei lá o motivo, carma vai ver, mas não conseguiu, porque isso já faz uns dois anos e eu fiz vários exames de lá pra cá. Todos deram negativos. Pior pra ela. E agora sinto até vontade de rir um pouco.
Depois que ela morreu, eu ainda levei flores ao túmulo por um bom tempo. Não havia nada que me convencesse de que não havia ternura lá. Pra mim, era eu quem tinha falhado, eu é que não tinha conseguido encontrar o tesouro que existia dentro dela. Daria qualquer coisa pra ver um daqueles quadros, talvez a chave esteja neles, vai saber. Contudo eu nunca vi quadro algum e nem sequer sei se eles existem, ou existiram efetivamente.
Foi há vinte anos hoje. A vida não vale mesmo a pena para algumas pessoas. Não penso em suicídio, mas pra mim chega. Esse bando de depravados não valem a poeira de que são feitos. Os motéis cospem porra e carros o dia inteiro. Pra mim chega. Faz vinte anos hoje. Que confusão. Os ovos não devem bailar junto às pedras. Nunca.