Belo
Horizonte, meados do século xx. Classe média tradicional, católica. Tempo em
que as famílias tinham muitos filhos, que as mães tratavam de educar ficando em
casa. Tempo de lençóis cheirosos, guardados em gavetas trancadas.
Esse
é o mergulho proustiano de Maria Christina Monteiro de Castro, em seu primeiro
romance, que mistura ficção e realidade. É uma estreia tardia, de uma senhora
de setenta anos que não tem cara de senhora; mas valeu a espera. É uma
escritora nata. Que intensidade de vida comunicada num estilo repleto de
expressões fortes e felizes!
Histórias
de pessoas que gostam de ler, que têm bom nível intelectual (ah, tão longe do
que a grande mídia nos serve hoje)... Mas é o Brasil profundo, em que
mergulhamos apenas ultrapassados os primeiros capítulos.
Há
ali pilhas de dados para sociólogos, psicólogos, psicanalistas... Mas há,
sobretudo, gente, e gente interessante (vendo essas figuras tão bem delineadas,
fiquei me lembrando de Dickens, cujos duzentos anos de nascimento são
gloriosamente comemorados em 2012 ). Onde estão essas figuras, que povoavam as
velhas casas de família? O avô materno, contador de histórias, amante de frases
latinas... O avô que tinha surtos terríveis de cólera, e vivia com um galo na
cabeça de tanto batê-la contra as paredes... O outro que lia muito, tinha
paixão pelas guerras púnicas... O tio mulherengo (“Cada minuto de minha vida
dediquei a fazer felizes as mulheres”) e o outro que respondia, quando acusado
de adultério: “Ninguém tem ideia de como é cansativo ser casado com mulher
inteligente 24 horas por dia!”
Mas
as figuras centrais, na poderosa primeira parte do livro, são o pai e a mãe,
desenhados com inesquecível relevo.
Da
mãe vinha a religião; e desse tema ninguém podia escapar. A menina inteligente
(que é a narradora do livro) embaralhava tudo: Quem é Deus? “Ah, meu Deus, essa
menina faz cada pergunta...!” É a menina que conta: “Para o bem e para o mal,
fomos moldados por seu nome: onipresente, onisciente, implacável, perfeitíssimo.”
Era a marca que o jansenismo francês imprimira ao catolicismo brasileiro, e que
ainda recentemente estava em vigor... Resultado, anota a narradora: o ser
humano como náufrago em mares encapelados, à mercê de forças ocultas.
A
menina sensível, imaginativa, ia à forra lendo muito, lendo de tudo. E a casa
cheia de gente era divertida. Declamava-se! Fazia-se teatro, sem a televisão
para cortar tudo... Mesmo nas famílias felizes, existe a luta por um lugar ao
sol. Muito mais sensível na família antiga, que era um ambiente mais fechado.
Nesse belo romance (realidade?) de formação, vê-se o jogo das quatro irmãs em
torno da figura carismática do pai.
A
família pede que cada uma delas se defina. (“Só depois percebi: cada uma estava
amarrada ou se amarrara a um papel na constelação familiar.”) Era como usar
máscaras. E sobre a casa inteira reinava o pai, deus tutelar, objeto de
reverência e adoração. Político bem-sucedido, distribuía agrados às filhas,
cultivava a sua corte.
Nesse
quadro, lenta e segura, transcorria a vida. “Viver era simples e garantido,
como o cheiro do refogado às 11 horas.” Depois, em visão retrospectiva, é que
se iam descerrar as cortinas, fazer-se luz sobre certos comportamentos — a
paixão daquele por aquela, a doce perversidade do tio, o choro contínuo da
filha da vizinha, a casa vendida às pressas, os primos jurados de morte...
Não
vou contar as histórias; não tiro esse prazer de vocês. Só deixo registrado que
esse romance/realidade se lê como uma comovente educação sentimental ao estilo
de Flaubert: como as quatro irmãs foram saindo dos seus casulos (para o que
colaborou, claro, a mudança desafiadora para o Rio de Janeiro); como a
realidade exterior (a política, em período dramático da vida brasileira) foi
interferindo nas existências individuais (começando com a carreira cintilante
do pai).
A
história mais desenvolvida, como não podia deixar de ser, é a da narradora, que
é, ela própria, todo um romance, com a sua ânsia de vida, sua mente inquieta,
suas rajadas de paixão... Assim ela passa por um casamento que teve os seus
bons momentos (a calmaria da maternidade, um certo sentimento de plenitude,
aquele egoísmo dos casais felizes) até que o dia a dia faça passar o seu rolo
compressor... e aí a lucidez retorna em forma de dor, de hiperconsciência; e
nada escapa desse olhar, nem a realidade brasileira nem as utopias (julgamento
severo, cortante, do casal Sartre/Simone de Beauvoir, observado na viagem deles
ao Brasil, cercado de dóceis admiradores...)
O
fracasso do casamento abre as portas para os capítulos finais, em que todas as
histórias (irmã por irmã) vão-se delineando sem perder a sua carga de
inesperado e de inacabado. É uma mulher madura (e sozinha) que conta essas
últimas histórias, em que se misturam tristezas e alegrias. Não é assim, a
vida?
Mas
de tantas histórias, fica esse enigma fabuloso que é o ser humano, com suas
vitórias e derrotas. No caso desse livro, tudo compensado abundantemente pela
presença de um grande coração. Que não se cansa de bater.
Título:
Por enquanto agora
Autor:
Maria Christina Monteiro de Castro
ISBN:
978-85-61022-69-3
Número
de páginas: 280
Preço
de capa: R$ 38,00