31 de ago. de 2012

A perda de Virginí


 Por Ludmila Rodrigues

Só tem mesmo a luz da lua. E umas estrelas pingadas no céu preto preto. A selva sempre me amedrontou muito, mas agora eu já não tenho medo de mais nada. O mato cresce de jeito que só para de existir lá no horizonte quando se encontra com o negrume do céu. Venta gelado, muito gelado mesmo, tanto que toda lágrima que cai dos meus olhos já seca bem rápido, não dá nem tempo de eu sentir o salgado do choro porque antes de chegar à boca já não escorre mais nada, só fica um fio seco como de gelo no meio da bochecha pra dizer que uma lágrima estivera molhada ali. Meu rosto vai ficando todo gelado do sereno, e eu agora já até consigo sentir o salgado porque são muitas, muitas lágrimas juntas e assim não dá tempo de secar tanto, apesar da ventania.

É engraçado isso de perder o que já se teve um dia. Mais à tardinha, eu caminhava e vi uma menina pequena, devia ter seus três anos. Tinha uma boquinha pequena que lembrava o formato de um coração e o cabelo preto cacheado, se vestia de vermelho e era mesmo uma graça. Linda linda, a menina, e eu parei em pé e fiquei olhando olhando olhando pra ela. Tinha um par de olhos muito vivos que, abertos, pareciam comer tudo o que se era observado. Os cachos se terminavam na altura dos ombros e foi que eu lembrei de Valentina, e lembrei não pelos olhos porque os meus e os de Lino são pequenos, mas pela brancura e pelos cachos nos cabelos. Lino tem cachos assim, é de uma brancura que só você vendo, e a boca de coração é dele também. 

A gente já tinha combinado: ela ia se chamar Valentina. E eu queria que o nariz também fosse dele porque acho o nariz dele uma coisa muito bonita, mas ele dizia que preferia o meu, dizia lindo é esse seu narizinho, Virginí então Valentina podia ter nossos cachos, a boca dele e meu nariz. Qual fosse o nariz, eu queria mesmo era o prazer de parir uma filha minha com Lino, mas agora tá tudo tão doído que até meus cachos embalados pelo vento fazem caminhos tortuosos na minha cara murcha. Tudo tão preto nessa selva, esse cheiro silvestre de mato denso, esses vaga-lumes que mais parecem estrelas que não sabem o caminho de volta pro céu. Fico aqui vendo essas árvores altas e, por um momento, desejei estar na copa, bem no alto de uma delas, mas não era para ver mais de perto a lua ou o céu ou as estrelas, era pra me jogar no chão bem lá do alto e esquecer que tenho que viver sem Lino.

Lino me deixou de um dia pro outro, se eu entendi não entendi, mas não sou de prender ninguém, até um pássaro na gaiola ou com a asa cortada me dá uma pena de matar que eu nem sei dizer. Então, quando Lino me disse que não queria mais continuar me vendo, eu engoli bem seco o choro e a tristeza que de tão desgraçada doía meu corpo inteiro por dentro e disse a ele que então eu não tinha o que fazer senão me acostumar com a falta que ele ia fazer e ele me respondeu que só podia ser assim mesmo.

A menina da lanchonete parece me olhar nessa escuridão, é porque me sinto comida. Aqueles olhos naquele rosto que decerto seria formado em meu ventre! Essas estrelas aos pares... Quando eu penso que agora minha Valentina tem que ter outra cara que não a compartida com Lino, não consigo me acostumar. E quando penso que nem mesmo ela será Valentina porque esse nome é um segredo nosso, me dá tanta mas tanta dor por dentro e uma vontade de chorar um rio todo e depois me debruçar nas margens e ficar lá, cruenta, esperando a morte chegar.

Se eu tivesse muita mas muita coragem eu ia atrás de Lino e lhe diria para não desistir de mim. Lhe diria o que um dia vi num filme, que um recomeço nunca deve ser negado — ou era evitado a palavra? Falaria uma porção de coisas que vem de dentro do coração, porque não saberia falar bonito mas saberia falar sentido. E fico pensando se Lino ia me abraçar apertado e me beijar chorando e dizer baixando os olhos como ele bem faz Virginí, minha Virginí, que bom que você veio, pequena, pensei morrer de tanta falta sua e se eu não apareci foi por muito medo de lhe procurar. Então eu diria mais uma porção de coisas do coração, aquelas bem sentidas porque eu tenho mesmo muito sentimento por Lino e ele se desculparia por me ter deixado que bobagem a minha, Virginí, tão querida, tão minha e eu ia poder ficar novamente calma sabendo que Valentina ainda seria Valentina, que eu ainda podia ter Lino em meus braços.

Não sei onde estou. Meus dedos estão duros de ventania, meus pelos todos estão eriçados com o uivo da escuridão. Caminhei a tarde inteira, fazia sol, depois veio a lanchonete, a menina, e eu continuei a caminhar desacreditada com os olhos brilhosos de choro preso na garganta, a caminhar a caminhar a caminhar até que dei nesse mato com a lua e me parei lembrando de Lino. Se fosse outro dia, agora mesmo eu ia estar morta de cansaço e medo, mas hoje, hoje que me venham fadiga, vertigem e assombrações, eu não ligo.

Me enveredo pela escuridão completamente silente, não fossem os ruídos dos grilos. Uma margarida balança e me lembrei daquele entardecer. Tinha chá de jasmim na panela inebriando a casa inteira e Lino me chegou com uma margarida fresca tão grande e viva. Disse que tinha lido que amarelo é desespero e branco é paz, então que a leitura dissera que uma margarida é desespero cercado de paz por todos os lados. Eu disse que pra mim amarelo não era nada de desespero, era sol, era quente. E aquele sorriso de Lino, sorriso de quando vinha me contar algo novo, tão dele. Arranco a margarida que balança e posso ver os grânulos como miúdas flores amarelas cercadas de pétalas grandes e brancas: a paz. Cheiro aquele cheiro de mel azedo ou é banana, tenho muita vontade de chorar de novo — amarelo é puro desespero. Continuo a me adentrar na mata. Depois de perder Lino, qualquer mato espinhento e escuro é caminho para qualquer lugar. Não há problema, hoje nada me assombra senão essa dor ordinária de não ter Lino, senão a cara branca da menina da lanchonete. 

Olho para trás e já não vejo estrada. Estou completamente imersa, dentro do coração da selva. Cintilou uma estrela cadente, fecho meus olhos para fazer um pedido porque não sou dada a esses misticismos mas acredito no presente que, às vezes, Deus pode conceder às almas desesperadas. Abro os olhos bem devagar como que para prolongar a fé e vejo que um lobo de pelagem branca muito reluzente me olha. As orelhas estão em pé, os olhos são pretos e brilhantes, perfeitamente rasgados em simetria. Ergui a cabeça e agora posso ver outros três lobos mais adiante, um deles tem o longo focinho ensanguentado — morrera alguma criatura da noite. Olho além. Árvores, árvores, montanhas, céu. Aceno para Lino que vem cortando a mata; está montado num lustroso cavalo negro, me vem salvar, me diz suba, Virginí, é só montar.

Volto à minha frente e os lobos parecem conversar numa língua só deles. Confabulam, os lobos. Avançam quase que calmamente em minha direção. Me entrego. Inteira.
 
Ludmila Rodrigues nasceu em 21 de janeiro de 1991, em Salvador, na Bahia. Contista e poeta, teve seu trabalho publicado em antologias e revistas de diversos lugares do Brasil. Em 2012, publicou O rosto na xícara, seu primeiro livro — que abrange poemas e prosa poética.