Por
Ludmila Rodrigues
Só tem mesmo a luz da lua. E umas
estrelas pingadas no céu preto preto. A selva sempre me amedrontou muito, mas
agora eu já não tenho medo de mais nada. O mato cresce de jeito que só para de
existir lá no horizonte quando se encontra com o negrume do céu. Venta gelado,
muito gelado mesmo, tanto que toda lágrima que cai dos meus olhos já seca bem
rápido, não dá nem tempo de eu sentir o salgado do choro porque antes de chegar
à boca já não escorre mais nada, só fica um fio seco como de gelo no meio da
bochecha pra dizer que uma lágrima estivera molhada ali. Meu rosto vai ficando
todo gelado do sereno, e eu agora já até consigo sentir o salgado porque são
muitas, muitas lágrimas juntas e assim não dá tempo de secar tanto, apesar da
ventania.
É engraçado isso de perder o que já se teve um dia. Mais à tardinha, eu caminhava e vi uma menina pequena, devia ter seus três anos. Tinha uma boquinha pequena que lembrava o formato de um coração e o cabelo preto cacheado, se vestia de vermelho e era mesmo uma graça. Linda linda, a menina, e eu parei em pé e fiquei olhando olhando olhando pra ela. Tinha um par de olhos muito vivos que, abertos, pareciam comer tudo o que se era observado. Os cachos se terminavam na altura dos ombros e foi que eu lembrei de Valentina, e lembrei não pelos olhos porque os meus e os de Lino são pequenos, mas pela brancura e pelos cachos nos cabelos. Lino tem cachos assim, é de uma brancura que só você vendo, e a boca de coração é dele também.
A gente já tinha combinado: ela ia se
chamar Valentina. E eu queria que o nariz também fosse dele porque acho o nariz
dele uma coisa muito bonita, mas ele dizia que preferia o meu, dizia lindo
é esse seu narizinho, Virginí então Valentina podia ter nossos cachos, a
boca dele e meu nariz. Qual fosse o nariz, eu queria mesmo era o prazer de
parir uma filha minha com Lino, mas agora tá tudo tão doído que até meus cachos
embalados pelo vento fazem caminhos tortuosos na minha cara murcha. Tudo tão
preto nessa selva, esse cheiro silvestre de mato denso, esses vaga-lumes que
mais parecem estrelas que não sabem o caminho de volta pro céu. Fico aqui vendo
essas árvores altas e, por um momento, desejei estar na copa, bem no alto de
uma delas, mas não era para ver mais de perto a lua ou o céu ou as estrelas,
era pra me jogar no chão bem lá do alto e esquecer que tenho que viver sem
Lino.
Lino me deixou de um dia pro outro, se
eu entendi não entendi, mas não sou de prender ninguém, até um pássaro na
gaiola ou com a asa cortada me dá uma pena de matar que eu nem sei dizer.
Então, quando Lino me disse que não queria mais continuar me vendo, eu engoli
bem seco o choro e a tristeza que de tão desgraçada doía meu corpo inteiro por
dentro e disse a ele que então eu não tinha o que fazer senão me acostumar com
a falta que ele ia fazer e ele me respondeu que só podia ser assim mesmo.
A menina da lanchonete parece me olhar
nessa escuridão, é porque me sinto comida. Aqueles olhos naquele rosto que
decerto seria formado em meu ventre! Essas estrelas aos pares... Quando eu
penso que agora minha Valentina tem que ter outra cara que não a compartida com
Lino, não consigo me acostumar. E quando penso que nem mesmo ela será Valentina
porque esse nome é um segredo nosso, me dá tanta mas tanta dor por dentro e uma
vontade de chorar um rio todo e depois me debruçar nas margens e ficar lá,
cruenta, esperando a morte chegar.
Se eu tivesse muita mas muita coragem eu ia atrás de Lino e lhe diria para não desistir de mim. Lhe diria o que um dia vi num filme, que um recomeço nunca deve ser negado — ou era evitado a palavra? Falaria uma porção de coisas que vem de dentro do coração, porque não saberia falar bonito mas saberia falar sentido. E fico pensando se Lino ia me abraçar apertado e me beijar chorando e dizer baixando os olhos como ele bem faz Virginí, minha Virginí, que bom que você veio, pequena, pensei morrer de tanta falta sua e se eu não apareci foi por muito medo de lhe procurar. Então eu diria mais uma porção de coisas do coração, aquelas bem sentidas porque eu tenho mesmo muito sentimento por Lino e ele se desculparia por me ter deixado que bobagem a minha, Virginí, tão querida, tão minha e eu ia poder ficar novamente calma sabendo que Valentina ainda seria Valentina, que eu ainda podia ter Lino em meus braços.
Não sei onde estou. Meus dedos estão duros de ventania, meus pelos todos estão eriçados com o uivo da escuridão. Caminhei a tarde inteira, fazia sol, depois veio a lanchonete, a menina, e eu continuei a caminhar desacreditada com os olhos brilhosos de choro preso na garganta, a caminhar a caminhar a caminhar até que dei nesse mato com a lua e me parei lembrando de Lino. Se fosse outro dia, agora mesmo eu ia estar morta de cansaço e medo, mas hoje, hoje que me venham fadiga, vertigem e assombrações, eu não ligo.
Me enveredo pela escuridão
completamente silente, não fossem os ruídos dos grilos. Uma margarida balança e
me lembrei daquele entardecer. Tinha chá de jasmim na panela inebriando a casa
inteira e Lino me chegou com uma margarida fresca tão grande e viva. Disse que
tinha lido que amarelo é desespero e branco é paz, então que a leitura dissera
que uma margarida é desespero cercado de paz por todos os lados. Eu disse que
pra mim amarelo não era nada de desespero, era sol, era quente. E aquele
sorriso de Lino, sorriso de quando vinha me contar algo novo, tão dele. Arranco
a margarida que balança e posso ver os grânulos como miúdas flores amarelas
cercadas de pétalas grandes e brancas: a paz. Cheiro aquele cheiro de mel azedo
ou é banana, tenho muita vontade de chorar de novo — amarelo é puro desespero.
Continuo a me adentrar na mata. Depois de perder Lino, qualquer mato espinhento
e escuro é caminho para qualquer lugar. Não há problema, hoje nada me assombra
senão essa dor ordinária de não ter Lino, senão a cara branca da menina da
lanchonete.
Olho para trás e já não vejo estrada.
Estou completamente imersa, dentro do coração da selva. Cintilou uma estrela
cadente, fecho meus olhos para fazer um pedido porque não sou dada a esses
misticismos mas acredito no presente que, às vezes, Deus pode conceder às almas
desesperadas. Abro os olhos bem devagar como que para prolongar a fé e vejo que
um lobo de pelagem branca muito reluzente me olha. As orelhas estão em pé, os
olhos são pretos e brilhantes, perfeitamente rasgados em simetria. Ergui a
cabeça e agora posso ver outros três lobos mais adiante, um deles tem o longo
focinho ensanguentado — morrera alguma criatura da noite. Olho além. Árvores,
árvores, montanhas, céu. Aceno para Lino que vem cortando a mata; está montado
num lustroso cavalo negro, me vem salvar, me diz suba, Virginí, é só
montar.
Volto à minha frente e os lobos parecem
conversar numa língua só deles. Confabulam, os lobos. Avançam quase que
calmamente em minha direção. Me entrego. Inteira.
Ludmila Rodrigues nasceu em 21 de janeiro de 1991, em
Salvador, na Bahia. Contista e poeta, teve seu trabalho publicado em
antologias e revistas de diversos lugares do Brasil. Em 2012, publicou O
rosto na xícara, seu primeiro livro — que abrange poemas e prosa
poética.