Por Nilto Maciel
Despertava Astrolábio de Órleans e Bragança da Silva quando os primeiros raios do Sol batiam na vidraça do quarto. Pulava da cama, espreguiçava-se e corria ao banheiro. Livrava-se das impurezas, banhava-se demoradamente, barbeava-se com esmero, vestia bermuda apertada e corria, saltitante, pela casa, no rumo do jardim. Olhava para as orquídeas, como se mirasse vulvas abertas, extasiava-se e ia buscar as tesouras de podar. Ao passar pela sala, saltitava feito bailarino. Punha um disco na radiola e dançava abraçado a si mesmo. Ou brincava de amarelinha nos quadriláteros do piso da sala. No jardim, seis olhinhos azuis o vigiavam entre folhas e flores. Atento à rotina, dava conselhos a Chico, Orlando e Carlos. Não miassem, para não assustar as orquídeas. E eles quase nunca miavam e, quando o faziam, ninguém os ouvia. Não caçassem lagartixas em correrias doidas entre as plantas. E eles nunca corriam, quase sempre deitados, sonolentos. Deixassem as borboletas em paz. E os persas mal olhavam para elas.
Duas horas depois, Maria se anunciava para as labutas do dia. Abria o portão, dava bom-dia, queixava-se dos ônibus lotados, dos homens safados, das filas nos terminais, do preço das passagens. Astrolábio fazia ouvidos de mercador, olhos e mãos dedicados às flores. Lá-lá-ri-lá-lá. Podava daqui e dali, até ser chamado para o café. Largava o serviço pelo meio, deitava a tesoura no chão e zarpava no rumo da cozinha. Sentava-se à mesa, mordiscava pão e lambuzava de manteiga os lábios de floridos. E também se queixava, mas das formigas, dos insetos. Maria, esquecida dos homens safados, falava de doces e delícias.
Muito mais tarde, Gertrudes acordava para dar ordens a Maria. Varresse bem a casa, lavasse as cuecas de Astrolábio, catasse o feijão, tirasse as pelancas da carne. Tomado o café, se vestia como uma sirigaita, se pintava toda, lábios vermelhos, rosto de mocinha. Fechava o portão,
guardava na bolsa a chave e saía para a rua, serelepe como sempre. Ia visitar uma irmã, pagar conta de luz, comprar xampu. Regressava na hora do almoço, afogueada, cansada, doida por um banho demorado. E Astrolábio ainda a podar as plantas, conversar com os gatos e insultar os insetos. Galhardo, vamos cantar: Certa manhã destas manhãs cheias de luz, por entre as rosas do jardim eu vi passar gentil borboleta de asas azuis... Chico Viola e Orlando Silva se mostravam descontentes e se retiravam para outras sombras.
Entre uma poda e outra, corria ao barzinho na sala e enchia um copinho de conhaque. Punha na radiola um disco de Noel e cantarolava: Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa uma boa média. Tornava ao jardim, com jeito de boêmio.
Noutro dia, beijava o rosto de Dalva de Oliveira e, com voz de moça, cantava: Atiraste uma pedra no peito de quem só te fez tanto bem.
Depois do terceiro conhaque, sentia no rosto a barba crescida e na cara toda a infelicidade do mundo, como se fosse Vicente Celestino. Voltava ao bar e aos discos e inundava a casa e a vizinhava de gritos: Já fui feliz e recebido com nobreza até. Nadava em ouro e tinha alcova de cetim.
No fim de certa manhã, Gertrudes retornou da rua, acalorada e falante. Pacotes e sacolas repletas de bugigangas. Contemplou os gatinhos, que se mexeram. Onde está ele? Os bichinhos nada responderam. Talvez o homem estivesse na sala. No balcão do barzinho o copo vazio. Na cozinha Maria se esfalfava diante das panelas. Por onde andava o jardineiro? Não sabia. Vasculhou a casa toda. E nada de Astrolábio. Restava pedir socorro aos filhos. Correu ao telefone e convocou Noel, Dalva e Vicente. O pai havia sumido desde a manhã. Saiu de casa? Não, ele nunca sai de casa. Só comigo, vocês sabem.
Demoraram a chegar, mas, ao se virem no jardim, se apavoraram. Apenas as orquídeas intactas e belas e as demais flores em pleno viço. Os gatos descansavam à sombra das roseiras. Correram à sala. Na radiola, um disco de Gardel. No bar, o copinho sujo. Voltaram ao jardim. Entre as plantas, uma figura estranha, nunca vista por eles, coberta de folhas e espetada por mil espinhos. Estátua de meio metro, imagem e semelhança de Astrolábio, como se dançasse um balé, sorriso largo, olhar de quem tudo viu e viveu.
* Este é o décimo conto da primeira parte do livro Luz vermelha que se azula, de Nilto Maciel.