Uma noite dessas estava com
insônia, depois de me revirar na cama, resolvi me levantar e ir até o banheiro.
Entrei e não acendi a luz, antes de lavar o rosto, comecei olhar fixamente no
espelho, na escuridão minha face parecia diferente, esburacada, menor e disforme.
O meu semblante estava tão estranhamente fluído que eu podia ver peixes nadando
através dele e me encarando dentro da moldura. Estava lendo Rosa Montero um
pouco antes de me deitar, talvez por isso tenha ficado um pouco confusa e pensado: como é possível alguns autores rejeitarem com tanta veemência a influência de
suas vidas em suas obras, como se assumir isso os tornassem menores, menos
competentes: A maioria dos livros omite o
‘eu’ ou a primeira pessoa; aqui ele será mantido(...) Geralmente não lembramos
que afinal é sempre a primeira pessoa que está falando.[1]
Afinal, se é verdade o que dizia
Whitman: sou vasto, contenho multidões,
e se uma simples escuridão nos camufla e distorce, como negar a influência das
experiências íntimas em nossos escritos? Observo que estamos numa época tão
mecânica e racionalista que aproveitar o que a vida nos proporciona é
considerado pedantismo: Eu posso ou não
consentir na experiência, seja de natureza poética, seja ela de natureza
religiosa, que é dirigida não à minha inteligência, não ao meu aparelho lógico,
ao meu entendimento, mas ao meu vazio, à minha carência absoluta, à minha
pobreza.[2]
O tempo inteiro, em todos os
outdoors, em todos os discursos encontro o verso de Drummond: Neste país é proibido sonhar. Até mesmo
na arte, um espaço supostamente dionisíaco, pedem racionalismo e lógica
matemática.
Alguns autores se vangloriam por
serem atemporais e por priorizarem narrativas em que o espaço é o não-lugar. No
entanto, eles parecem não perceber que até mesmo o não-lugar descrito em suas
obras é criado a partir de um lugar em que o autor pisou e repisou. Ou seja, o
não-lugar é uma espécie de utopia, nunca será alcançado.
O que aconteceria com a
literatura de Dostoievski, Silvia Plath, Hemingway, John Fante, Thoreau,
Katherine Mansfield, Adélia Prado se simplesmente tivessem subestimado suas
experiências? O que seria da pintura de Modigliani e de Frida Kahlo se tivessem
ignorado suas obsessões? Talvez continuassem sendo grandes artistas, mas com
toda certeza não seriam tão viscerais e convincentes.
A escrita é uma tentativa de
recuperar nossas máscaras e carrancas perdidas. Análise combinatória, é isso, nunca
fui muito boa em matemática, mas assim mesmo foi fácil perceber, nossa vida não
passa de uma brincadeira perversa de possibilidades. E o que fazer com as
possibilidades descartadas? Jogá-las fora ou deixá-las a mingua na sarjeta me
parece uma solução muito cruel. Sou extremamente afeita às outras de mim que
esmago e escondo todos os dias. Talvez tenha sido por causa de toda essa
afeição que me tornei escritora. Também não foi difícil chegar à conclusão que
com as narrativas não é muito diferente, temos um rol de probabilidades,
matamos alguns personagens, incubamos e fazemos nascer outros.
Acredito que existam três
categorias de pessoas, as loucas, as frustradas e as escritoras. Sou plural, mas
nem todos os meus “eus” podem ficar passeando por aí, caso contrário, eu seria
rapidamente tachada de esquizofrênica. É através da escrita que posso enfiar as
mãos em minhas entranhas e desenterrar minhas outras possibilidades escondidas,
é como se no meu útero existissem milhões de óvulos, esperando apenas uma
narrativa para terem a chance de serem finalmente fecundados: porque nossa identidade reside na memória,
no relato da nossa biografia. Portanto, poderíamos deduzir que os seres humanos
são, acima de tudo, romancistas, autores de um único romance cuja escrita dura
toda a existência (...)[3]. A
escrita é uma forma de redenção, de trazer à tona filhos abortados,
personalidades dementes e perigosas.
Em uma sociedade que preza tanto
a sanidade e a coerência, não há espaço para criatividade, menos ainda para
pluralidade. Então, se temos que nos contentar em sermos unos e levarmos uma
vida medíocre, explicável e não contraditória, que haja na arte espaço para
nossas incoerências e bipolaridades. Espaço para ressuscitarmos nossos “eus” enforcados.
É preciso colocar a vida entre o centro de curvatura e o ponto focal de um
espelho esférico côncavo, assim obteremos uma narrativa maior, invertida e real.