13 de jun. de 2012

Narrativas ou confidências? - Malagueta # 29

Por Marcia Barbieri



Uma noite dessas estava com insônia, depois de me revirar na cama, resolvi me levantar e ir até o banheiro. Entrei e não acendi a luz, antes de lavar o rosto, comecei olhar fixamente no espelho, na escuridão minha face parecia diferente, esburacada, menor e disforme. O meu semblante estava tão estranhamente fluído que eu podia ver peixes nadando através dele e me encarando dentro da moldura. Estava lendo Rosa Montero um pouco antes de me deitar, talvez por isso tenha ficado um pouco confusa e pensado: como é possível alguns autores rejeitarem com tanta veemência a influência de suas vidas em suas obras, como se assumir isso os tornassem menores, menos competentes: A maioria dos livros omite o ‘eu’ ou a primeira pessoa; aqui ele será mantido(...) Geralmente não lembramos que afinal é sempre a primeira pessoa que está falando.[1]  
Afinal, se é verdade o que dizia Whitman: sou vasto, contenho multidões, e se uma simples escuridão nos camufla e distorce, como negar a influência das experiências íntimas em nossos escritos? Observo que estamos numa época tão mecânica e racionalista que aproveitar o que a vida nos proporciona é considerado pedantismo: Eu posso ou não consentir na experiência, seja de natureza poética, seja ela de natureza religiosa, que é dirigida não à minha inteligência, não ao meu aparelho lógico, ao meu entendimento, mas ao meu vazio, à minha carência absoluta, à minha pobreza.[2]
O tempo inteiro, em todos os outdoors, em todos os discursos encontro o verso de Drummond: Neste país é proibido sonhar. Até mesmo na arte, um espaço supostamente dionisíaco, pedem racionalismo e lógica matemática.
Alguns autores se vangloriam por serem atemporais e por priorizarem narrativas em que o espaço é o não-lugar. No entanto, eles parecem não perceber que até mesmo o não-lugar descrito em suas obras é criado a partir de um lugar em que o autor pisou e repisou. Ou seja, o não-lugar é uma espécie de utopia, nunca será alcançado.
O que aconteceria com a literatura de Dostoievski, Silvia Plath, Hemingway, John Fante, Thoreau, Katherine Mansfield, Adélia Prado se simplesmente tivessem subestimado suas experiências? O que seria da pintura de Modigliani e de Frida Kahlo se tivessem ignorado suas obsessões? Talvez continuassem sendo grandes artistas, mas com toda certeza não seriam tão viscerais e convincentes.
A escrita é uma tentativa de recuperar nossas máscaras e carrancas perdidas. Análise combinatória, é isso, nunca fui muito boa em matemática, mas assim mesmo foi fácil perceber, nossa vida não passa de uma brincadeira perversa de possibilidades. E o que fazer com as possibilidades descartadas? Jogá-las fora ou deixá-las a mingua na sarjeta me parece uma solução muito cruel. Sou extremamente afeita às outras de mim que esmago e escondo todos os dias. Talvez tenha sido por causa de toda essa afeição que me tornei escritora. Também não foi difícil chegar à conclusão que com as narrativas não é muito diferente, temos um rol de probabilidades, matamos alguns personagens, incubamos e fazemos nascer outros.
Acredito que existam três categorias de pessoas, as loucas, as frustradas e as escritoras. Sou plural, mas nem todos os meus “eus” podem ficar passeando por aí, caso contrário, eu seria rapidamente tachada de esquizofrênica. É através da escrita que posso enfiar as mãos em minhas entranhas e desenterrar minhas outras possibilidades escondidas, é como se no meu útero existissem milhões de óvulos, esperando apenas uma narrativa para terem a chance de serem finalmente fecundados: porque nossa identidade reside na memória, no relato da nossa biografia. Portanto, poderíamos deduzir que os seres humanos são, acima de tudo, romancistas, autores de um único romance cuja escrita dura toda a existência (...)[3]. A escrita é uma forma de redenção, de trazer à tona filhos abortados, personalidades dementes e perigosas.
Em uma sociedade que preza tanto a sanidade e a coerência, não há espaço para criatividade, menos ainda para pluralidade. Então, se temos que nos contentar em sermos unos e levarmos uma vida medíocre, explicável e não contraditória, que haja na arte espaço para nossas incoerências e bipolaridades. Espaço para ressuscitarmos nossos “eus” enforcados. É preciso colocar a vida entre o centro de curvatura e o ponto focal de um espelho esférico côncavo, assim obteremos uma narrativa maior, invertida e real.


[1] THOREAU, H.D. Walden.
[2] PRADO, Adélia. Experiência religiosa no cotidiano.
[3] MONTEIRO, Rosa. A louca da casa.