9 de jun. de 2012

Fandemônio nº 6: Para que serve o imponderável

Por Roberto de Sousa Causo



O sujeito pode ser um leitor de ficção científica – alguém que lê regularmente livros do gênero; ou pode ser um de ficção científica – alguém que possui um grande entusiasmo pelo gênero. O fã pode até prescindir da leitura: talvez ele seja apenas fã de FC no cinema, nos videogames ou na televisão. Mas ele só pode ser um fã ativo quando externar o seu entusiasmo perante os seus pares.
Eu me tornei um fã ativo em 1983, depois de responder a um apelo de José Carlos Neves, de que gostaria de se corresponder com outros fãs de FC; apelo esse feito em carta na revista Cinemin, que na época dava atenção aos sucessos do cinema americano de FC e fantasia.
Zé Carlos era um dos editores do fanzine Hiperespaço, criado por ele, Cesar Silva e Mário Dimov Mastrotti naquele ano, de modo que entrei diretamente em contato com esse que foi um dos fanzines mais influentes daquele momento – e que hoje ainda sobrevive como o blog de Cesar Silva, Mensagens do Hiperespaço [http://mensagensdohiperespaco.blogspot.com.br]. (Recentemente, o fã Alexandre Lucchesi disponibilizou um exemplar da primeira geração do Hiperespaço, no seu blog Gabinete do Dr. Lucchesi: http://alexandrelucchese.blogspot.com.br/2012/06/zines-historicos-para-baixar.html)
Por sua vez, Hiperespaço me apresentou ao Clube de Ficção Científica Antares e o seu Boletim Antares, editado por Jane Terezinha Mondello de Souza. Nesses e noutros fanzines – como o nordestino Space –,publiquei meus primeiros contos, desenhos e artigos. Mais tarde, o Boletim Antares me apresentou o Clube de Leitores de Ficção Científica, criado em 1985 por R. C. Nascimento, por intermédio do qual fiz meu primeiro trabalho profissional em ilustração (o cartaz da II Mostra de Ficção Científica, realizada em 1988). O fanzine de Jane Terezinha também me apresentou a revista semiprofissional francesa Antarès – Science Ficcion sans Frontieres (sem parentesco com o clube brasileiro), editada por Jean-Pierre Moumon e na qual saiu meu primeiro conto publicado profissionalmente: “A Última Chance” (1989).
Naquela época, estes eram os meios de ser um fã ativo: comprar e assinar fanzines, colaborar com eles ou editá-los, escrever cartas e trocar recortes e fotocópias, associar-se a clubes e participar de reuniões e eventos. Hoje, imagino, ser um fã ativo significa participar de listas de discussão, comunidades no Orkut ou Facebook, criar blogs e sites – mas clubes, eventos e mesmo fanzines (agora em PDF e distribuição pela rede) ainda têm o seu espaço. Como ocorreu comigo, essas atividades de fãs são a porta de entrada para atividades profissionais ou semiprofissionais.
O fandom, definido como essa interação entre fãs, é um fenômeno muito antigo na FC. O próprio Hugo Gernsback (1884-1967), o editor que criou a expressão “science fiction”, também teria sido o pai do fandom americano, ao lançar The Science Fiction League nas páginas da revista Wonder Stories, em 1934. O interesse de Gernsback era mobilizar os fãs a favor de suas iniciativas, mas essas coisas têm uma tendência natural a fugir do controle e ganhar vida própria.
Existe até uma organização chamada First Fandom [http://www.firstfandom.org], que reúne fãs ativos desde a década de 1930. O grupo se apresenta em convenções e organiza um prêmio Hall of Fame desde 1976, destacando contribuições significativas para a FC, sob uma perspectiva de trinta anos, além do Moskowitz Archive Award, que premia, desde 1998, grandes colecionadores (Sam Moskowitz foi um dos primeiros pesquisadores-fãs).
No Brasil, o fandom surge na década de 1960. Segundo anotações no diário do jornalista e escritor Jerônymo Monteiro [http://jeronymomonteiro.blogspot.com.br] (1908-1970), já havia em fins de 1963 um grupo em São Paulo, às vezes chamado por ele de Clube dos Autores de FC, outras de Clube de Ficção Científica ou Clube de Ciencificção. Realizava encontros duas vezes por mês, com almoços e jantares. Monteiro foi o grande catalisador dessas atividades – que levaram, em 1965, à realização da I Convenção Brasileira de Ficção Científica na capital paulista. Durante o evento, foi fundada a Associação Brasileira de Ficção Científica, inclusive com a publicação de um boletim interno do evento, O Cobra (de Convenção Brasileira), que pode ter sido o primeiro fanzine brasileiro de FC [http://pt.wikipedia.org/wiki/Fanzine#Fanzines_no_Brasil]. Mimeografado, O Cobra foi seguido por Dr. Robô, como o clubzine da ABFC. Com a morte de Monteiro em 1970, essas iniciativas foram descontinuadas. O fandom ressurgiria apenas em 1981 ou 1982, com fanzines como Star News e Boletim Antares. Em 1997, na V InteriorCon, organizei o Primeiro (e único) Encontro do Primeiro Fandom Brasileiro, com as presenças de André Carneiro, Nilson Martello, Luiz Marcos da Fonseca e Therezinha Monteiro (a filha de Jerônymo).
Certamente, o Boletim Antares, editado por Jane Terezinha para o Clube Antares (desdobramento de um clube astronomia amadora), foi mais importante para a história do gênero. O clube realizou três ou quatro edições do Prêmio Fausto Cunha ­– que teve entre seus finalistas nomes como Jorge Luiz Calife e Gerson Lodi-Ribeiro –, e também organizou a sua própria I Convenção Brasileira de Ficção Científica, em 1985, neste país de memória curta. Além do Boletim Antares, Porto Alegre também produziu o Millennium, fanzine do Grupo Genesis de Ficção Científica, mais voltado para o cinema.
De lá pra cá muita coisa rolou, mas neste ano a realização do 1.ª Odisseia de Literatura Fantástica em Porto Alegre [http://odisseialitfan.wordpress.com] trouxe uma sugestiva circularidade. Organizado por Cesar Alcazar, Christopher Kastensmidt e Duda Falcão, e realizado nos dias 27 e 28 de abril, foi inspirado no já tradicional Fantasticon que ocorre anualmente em São Paulo. Mas teve cara própria e uma saudável ênfase na produção local – sua própria realização emana do fato do Rio Grande do Sul ter sua quota substancial de autores, fãs e editores (Alcazar e Falcão são os cabeças da Argonautas Editora [http://argonautaseditora.wordpress.com], de Porto Alegre). Com uma freqüência de mais de 500 pessoas, autores e editores vindos de diversas partes do Brasil e até da Argentina (o escritor Gustavo Bondoni), e 17 editoras vendendo seus produtos no evento, a Odisseia voltou a reivindicar a centralidade do Rio Grande do Sul no movimento de fãs, semelhante àquela do início do fandom moderno. (Particularmente indicativo disso foi o meu encontro, pela primeira vez, com Jerri Dias e Pedro Zimmermann [http://jerridias.blogspot.com.br/2011/04/pedro-zimmermann-entrevista.html], do Grupo Genesis de FC e do fanzine Millennium, durante a Odisseia.)
Mas não obstante o quanto o fandom possa ter avançado no Brasil, é inevitável que ele também receba críticas.
A mais recente veio do escritor Tibor Moricz, autor de Síndrome de Cérbero (2007), Fome (2009) e O Peregrino (2011). Moricz declarou no Facebook [http://www.facebook.com/tibor.moricz/posts/10150785785527295?comment_id=22207071] que o fandom, se posso ser eufemístico, não serve pra nada. A questão seria a falta de apoio dos fãs aos autores brasileiros: “FC brasileira não é lida nem pelo fandom. O nicho, que deveria prestigiar a nossa FC, lê os estrangeiros mas não lê o que a gente faz aqui dentro. Esse nicho, esse fandom, é uma merda.”
Seguiram-se dezenas de comentários, declarações, respostas e contra-respostas. Do Facebook, Moricz levou a discussão ao seu concorrido É só Outro Blogue [http://esooutroblogue.wordpress.com/2012/05/23/ficcao-cientifica-brasileira-elitizar-ou-popularizar], agora menos sobre o que o fandom poderia fazer por nós, e mais sobre uma estratégia, levantada por ele na discussão anterior, de popularizar a FC brasileira: “Defendi a popularização da FC com o intuito de podermos atingir um público maior”, escreveu. “Defendi simplificar a linguagem e os símbolos desse gênero para nos tornarmos mais compreensíveis. Defendi uma abertura de mercado que poderá nos beneficiar, que poderá nos levar a fronteiras antes não exploradas. Defendi a FC humanista (em contrapartida à hard, mas nem por isso menos ou mais importante que ela) como a que dialoga mais facilmente com esse público. Defendi uma evolução temática lenta e gradual para formarmos novos leitores.”
Embutida na proposta, uma oposição algo artificial entre elitista e popular, com o esboço de um argumento conciliador: “É válido elitizar a nossa literatura, a nossa FC, ao ponto de criarmos rupturas dentro de nosso próprio establishment? Vamos etiquetar determinados autores de gênero como maiores e menores? Determinadas obras de gênero como maiores ou menores (admitindo-se que o gênero é autossuficiente, é a ele que julgamos em primeira instância. Mas sem deixar de compreender e aceitar que existem obras melhores e piores, mais elaboradas e menos elaboradas)?”
Tenho a sensação muito aflitiva de que isto é o retorno – com retórica um pouco menos acidentada – de um dos primeiros e menos produtivos postulados da Terceira Onda da Ficção Científica (de 2004 ao presente), contra o qual me posicionei logo no início do movimento. Realmente, não quero retornar a essa discussão; no momento, basta apontar um problema recorrente nesse tipo de proposta, que é centralizar tudo na figura do escritor ou coletividade de escritores. O buraco é bem mais embaixo e envolve um sistema complexo de interações entre editoras, distribuidoras e formadores de opinião, sem mencionar hábitos de leitura. Escritores costumam chamar para si soluções de problemas difíceis porque têm a tendência de apenas enxergarem a si mesmos e seus colegas.
Talvez isso seja um vício do ensino de literatura ou resultado do silêncio inerente de uma sociedade de poucos leitores. A voz do leitor é miúda, o escritor tende a declarar mais alto suas intenções. Mas o assunto é o fandom, e se ele se define como comunidade de fãs, de possíveis leitores de FC, isso significa que sua voz deveria ser bem mais audível. Eu suspeito que a ela não o é em parte porque a timidez em afirmar o que é bom ou ruim já está aí, há muito tempo e sem produzir a almejada união do “establishment”. Não obstante, não tenho dúvida de que parte da efervescência atual que vivemos se deve à existência prévia dessa comunidade.
O embrião do fandom atual já existia, claro, naquele bem menos auspicioso momento anterior. As críticas contra o fandom na época foram semelhantes às atuais, e provavelmente originárias da mesma causa – a sua incapacidade de apoiar os talentos locais, em vendas ou em reputação literária. O fandom não tem nenhum desses poderes, e depois de um tempo, aqueles escritores que nele convivem compreendem isso e passam a ver nele a origem de todos os problemas. Assim fandom vira “fandango”, comunidade vira “gueto”, e interlocutores viram massa inculta que impede os escritores de alçarem vôo, de alcançarem novos públicos. Em 1997 ou 1998 houve um surto semelhante nas listas do CLFC na Internet. Os principais acusadores logo se tornaram recovering fans – fãs que, cansados das interações do fandom, se afastam para se recuperarem. Mas pouco depois eles estavam engrossando as comunidades do Orkut, que, convenhamos, apresentam um nível ainda mais limitado de interação entre fãs. Ruim com ele, pior sem ele... ou até que o pessoal novo conclua que o fandom não é o salvador da pátria da FC.
Reaproveitando o que escrevi no Facebook, o fandom é uma instituição importante, mas sua história deixa claro que ele nunca funcionou como um mercado minimamente substancial para a FC nativa. Por ser inerentemente anárquico, tentativas de esterçá-lo na direção de um ou outro interesse particular redundam na formação de feudos que rapidamente degeneram em guerrilha fraticida – aquela mesma que sempre acaba chocando os recém-chegados; e, ocasionalmente, até um veterano de muitas escaramuças, como eu.
O papel do fandom não é esse. Não funcionou assim para Gernsback, como esperar que funcione aqui, tão abaixo da Linha do Equador? Seu papel é manter e difundir discussões especializadas e de fomentar instituições críticas, editoriais e de formação de autores, que não estão disponíveis fora-fandom. A comunidade Ficção Científica no Orkut tem 6.700 membros inscritos – fãs ativos, já que se reuniram mesmo que virtualmente, para discutir o assunto. Se um terço deles comprasse modestos dez novos livros de FC por ano, não haveria editor da área em dificuldade. Claramente, há um funil aí, no qual a literatura é minoritária (e cinema, games, TV e quadrinhos majoritários), e dentro dele, o autor brasileiro se coloca no seu diâmetro mais estreito.
Esse também é o papel do muito mais poderoso fandom americano.
Em 1940, Jerry K. Westerfield, então editor de Amazing Stories (a revista que Gernsback fundou em 1926), escreveu que, “dos 500 mil leitores da ficção científica, apenas cerca de 5 mil deles são fãs. Mas esses 5 mil fazem todo o barulho e soltam todos os fogos de artifício.” O artigo dele, “The Sky’s No Limit” (1940), está num maravilhoso livro chamado Pulp Fictioneers: Adventures in the Storytelling Business [http://www.amazon.com/Pulp-Fictioneers-Assorted-Hands/dp/1886937834] (2004), editado por John Locke com artigos recuperados de revistas como Writer’s Digest [http://www.writersdigest.com], na época mesmo das revistas pulp.
No Brasil de hoje é mais ou menos essa a equação, porém numa escala bem menor. Em 1940, aqueles 5 mil provavelmente compravam todas as revistas (livros de FC ainda eram raros) e todos os fanzines, mas mesmo assim as revistas de tiragem média de 150 mil exemplares só podiam contar com eles como multiplicadores de interesse, não como mercado principal. E os autores americanos não tinham de enfrentar a concorrência de uma FC mais sofisticada e de maiores credenciais – aquilo que toda FC não-anglófona tem de encarar.
Seduzir um público não previamente conquistado pela FC é interessante como princípio e como conceito geral a que toda a literatura de gênero deveria almejar, sem o velho ranço de que, ao fazê-lo, ela deixaria de ser “de gênero”. Mas isso é muito difícil de visualizar e de realizar coletivamente. Assim como o velho argumento de que o que falta à FC brasileira é marketing, não mencionando que antes falta dinheiro para encomendar esse marketing. Por isso é bom lembrar que, como na equação de Westerfield, entre o fã de FC e o leitor comum existe ainda o leitor de FC que não é um fã ativo. Se o fandom brasileiro é composto de 500 fãs que fazem todo o barulho e soltam todos os fogos, talvez haja 5 mil ou 50 mil leitores potenciais do gênero. Mas Eles certamente são mais fáceis de abordar, e, novamente, há aquela histórica desconfiança do público quanto à capacidade do brasileiro de escrever literatura de gênero seja FC, fantasia, ficção de detetive, ficção militar ou outra qualquer.
Enfim, a história da FC no Brasil também nos lembra que o gênero teve efervescência e mercado (embora nenhuma respeitabilidade crítica) entre 1960 e meados de 1980 para depois ser impiedosamente assassinado pelos diversos planos econômicos. De lá pra cá, a cultura empresarial das editoras assumiu o bordão de que “ficção científica não vende”, ou passou a buscar outros filões – auto-ajuda, literatura urbana, divulgação histórica, e finalmente, a onda que todos surfam no momento, a literatura jovem-adulta. Isso implica que a FC como ramo editorial está renascendo agora, mas, em se tratando da FC brasileira, sem acesso àqueles meios de difusão que lhe garantiriam popularidade verdadeira: as grandes cadeias, as bancas de revista, as bibliotecas públicas e as raríssimas adaptações para outras mídias.
E tudo num contexto em que a maioria dos leitores não teve acesso ao estado da arte, formado nos últimos anos no exterior. Eles precisam ser reeducados nos caminhos que o gênero percorreu, e isso, novamente, demanda investimento, tempo e esforço. O fandom, por promover aqui e ali conceitos como New Weird, new space opera, FC feminista, queer e outros, dá passos miúdos nesse sentido, e muitas vezes indica direções às pequenas editoras associadas a ele. Então ele tem importância substancial, mesmo que não possa garantir um mercado para os autores locais.
Fixar a ficção científica como gênero viável aos autores brasileiros é o grande desafio de todas as gerações, de todas as ondas. Nesse processo, o fandom de FC é ferramenta cega, associação anárquica, organismo multicelular que se degenera e que se regenera periodicamente. Uma entidade imponderável com a qual trombamos no Fantasticon ou na Odisseia, na blogosfera e nas redes sociais. Tão duro de entender e administrar quanto a sociedade fora dos muros do suposto gueto que ela manteria. Uma ferramenta sem a qual teríamos bem menos do que temos hoje. O fandom só não é a panacéia dos nossos desejos frustrados.

Roberto de Sousa Causo é autor dos livros de contos A Dança das Sombras (Caminho, 1999), A Sombra dos Homens (Devir, 2004), dos romances A Corrida do Rinoceronte (Devir, 2006) e Anjo de Dor (2009), e do estudo Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil (Editora UFMG, 2003), que recebeu o Prêmio da Sociedade Brasileira de Arte Fantástica.
Seus contos foram publicados em revistas e livros de dez países. Foi um dos três classificados do Prêmio Jerônimo Monteiro (1991), da Isaac Asimov Magazine, e no III Festival Universitário de Literatura, com a novela Terra Verde (2000); foi o ganhador do Projeto Nascente 11 (da USP e do Grupo Abril) em 2001 com O Par: Uma Novela Amazônica, publicada em 2008. Completando um trio de novelas de FC ambientadas na Amazônia, Selva Brasil foi lançado em 2010 pela Editora Draco.
Causo escreveu sobre os seus gêneros de interesse para o Jornal da TardeFolha de S. Paulo e para a Gazeta Mercantil, para as revistas ExtrapolationScience Fiction StudiesCultCiência HojePalavra Dragão Brasil.
Mantém coluna quinzenal sobre ficção científica e fantasia no Terra Magazine (http://terramagazine.terra.com.br), a revista eletrônica do Portal Terra. O jornal A Tarde disse sobre ele: “Roberto de Sousa Causo é um dos mais atuantes escritores brasileiros de FC, horror e fantasia.” Vive em São Paulo, com esposa e um filho.