5 de mai. de 2012

A puta - III

Por Marcia Barbieri

Traças adormecem entre as frestas. Elas estão assim há trinta anos, como um olho cego na cara de um suicida. As suas feridas continuam alastrando o oco do seu corpo, o vácuo da sua alma. As fuligens dos objetos inanimados grudam nas suas órbitas. Ninguém irá ajudá-lo, as coisas mudaram. Você continua ingênuo, procurando respostas num mundo antigo, que se desfez fácil como uma malha mal tecida. Não temos mais médicos para aplicar injeções milagrosas. Os antibióticos não estão mais ao nosso alcance. Teremos que voltar nossas mãos para o alto e clamar por alguma divindade, qualquer uma serve, um céu, um sol. Mas se preferir posso pedir que minha mãe te benza, ela é curandeira, basta ela tomar um chá e entra em transe, se comunica com o sagrado. Eu sei que é pouco para um filósofo, mas para quem acredita piamente no Ser, não acho tão descabido crer em rezas e ramos santos. Quantos tomos de livros precisou ler para não crer em nada¿ Você é um cético de proveta, não é genuíno. Não foi a vida que te fez descrente, foram suas conversas de rodapé, notas no fim da página. Qual dos seus filósofos te salvou da ruína ou da gonorréia? Mesmo doente você continuou soberbo, continuou utilizando dialetos incompreensíveis, não queria se misturar a grande massa de ignorantes. Você costumava dizer que a mulher trazia o sêmen da desgraça, por isso se manteve casto por muitos anos. Você estava certo, a buceta é um buraco infectado. Você também trazia o leite infectado no seu pau, ele estava em carne viva, vertia uma pus esverdeada e fétida, e o que as mentes evoluídas fizeram por você? Nenhum deles quis te fazer a punção, com medo de se contaminar. Você também sentiu medo, pediu que eu passasse minhas mãos nas suas costas. Um bicho mimado. Eu recusei, você tinha a pele escamosa e seca, como a de um peixe que vive fora de seu habitat. Pensei nos axolotes que nunca conheci, na sua semelhança mórbida com os homens. Você demorou a aprender que os verbos estão distantes da ação. O corpo é a casa dos fortes, a alma é para quem tem tempo sobrando. A sua glande ainda traz cicatrizes de outros úteros, outras línguas, outras tragédias. Não assisto mais aos seus espetáculos. Você não encarava sóbrio a tristeza, me pedia para fazer a infusão com alguma planta alucinógena (as mandrágoras que cresciam ao lado do cemitério dos não nascidos), depois deitava sozinho no escuro e batia cinco punhetas seguidas, como se o prazer fosse capaz de compensar a dor. O prazer e a dor são frutos do mesmo escarro. Eu sabia que era inútil, no entanto, não via motivo para alertá-lo. Ninguém me avisou, tem coisas que somos obrigados a enxergar sozinhos. Não adianta a ducha para se limpar, a sua carne-músculo traz rachaduras, uma parede mal erguida, frágil nas estruturas mais primitivas. Acaricio com o dorso da língua suas fendas embrionárias, você se originou assim, homem bífido. Filho de uma placenta descolada. Não precisa me explicar, me poupe dos seus discursos vazios, você não tem mais platéia, todos os seus discípulos estão mortos, vagueiam na brancura fosca do nada. Você não vale um centavo e eu poderia esfaqueá-lo sem remorsos. Esfaqueá-lo como se faz com as marionetes depois das encenações. Poderia cortar todas as cordas e  assistir ao seu despencar. Prefiro me tocar enquanto trago um cigarro cubano, eles me acalmam. Fico imaginando como é o sexo dos homens cubanos, será que tem o cheiro forte como o dos cigarros¿ Penso no dedilhar dos músicos. Passo as mãos na parte interna das minhas coxas, vejo que elas começam a ficar flácidas, em compensação meus pelos pubianos ainda estão pretos, não vislumbro nenhum fio descolorido, ainda verto água, enquanto a água verter estou viva. Choro pelo cacto que um dia nascerá na minha vulva, então ela será terra seca, granulada. Olho pelo buraco por onde a chave deveria atravessar. Vejo homens solitários contando as dobras do intestino. Contam até dez e dão um nó e contam novamente até esgotar todas as possibilidades matemáticas. Solidão - progressão geométrica.