Por Daniel Lopes
Se pudesse entender, não escreveria. Estava cansado, um bocado cansado mesmo, embora contente. Contente porque depois de três meses eu poderia encontrar outra vez com Benedita, que é boa e eu amo. Contente por poder ficar longe de toda aquela correria do banco, daquele dinheiro todo, daqueles clientes todos, de todas aquelas gravatas coloridas e daqueles ternos bem e mal talhados. Estava feliz porque Benedita escrevia poesia e me esperava e era sexta-feira e o trem... o trem estava por vir, e me levar pro oeste, onde ela, Benedita, me esperava, com seu vestido vermelho, elefantes indianos desenhados e a bíblia aberta sobre o criado-mudo.
Se pudesse entender, não escreveria. Estava cansado, um bocado cansado mesmo, embora contente. Contente porque depois de três meses eu poderia encontrar outra vez com Benedita, que é boa e eu amo. Contente por poder ficar longe de toda aquela correria do banco, daquele dinheiro todo, daqueles clientes todos, de todas aquelas gravatas coloridas e daqueles ternos bem e mal talhados. Estava feliz porque Benedita escrevia poesia e me esperava e era sexta-feira e o trem... o trem estava por vir, e me levar pro oeste, onde ela, Benedita, me esperava, com seu vestido vermelho, elefantes indianos desenhados e a bíblia aberta sobre o criado-mudo.
Certo é que ainda
sobrava tempo pra tomar um café e fumar um cigarro olhando os gêmeos
colombianos tocarem suas flautas de bambu enquanto o trem não vinha. Enfim, era
tempo de sorrir, eu estava sem calor, de banho recém tomado, imaginando
Benedita nua com seus olhos brilhando no meio do rosto alegre, o corpo deixando
o vestido sair, as mãos prontas pra serem minhas. E pensar que em breve eu
seria senhor de tudo aquilo! Em breve eu não estaria mais na estação vermelha
esperando o trem, em
breve São Paulo e
suas neuroses seriam passado e eu beberia algumas cervejas bem geladas depois do
amor.
Eram sete e trinta e sete da noite, quando
olhei no relógio da estação e decidi que era hora de abandonar o café e
embarcar. Por farra resolvi pular a catraca, justamente na frente do guarda pra
ver o que aconteceria. Embora eu pulasse devagar, ele, o guarda, não esboçou
qualquer reação. Fez como se não me tivesse visto. Melhor pra mim que poderia
guardar o dinheiro pra mais tarde.
O trem não demorou
a encostar. Estranhei-o, porque era extremamente velho. Como é que uma coisa
naquela situação poderia atravessar o estado? De qualquer maneira eles, os
chefes da estrada de ferro, deveriam saber o que estavam fazendo. Não
colocariam pro serviço um veículo que não poderia fazê-lo.
Sentei. Sorri. E
decidi que era hora de tomar o meu comprimido azul.
Lá fora a noite
aumentava cada vez mais. E, aos poucos, uma névoa clara quase como nuvem
envolvia o trem. Senti meu corpo amolecer. Estava relaxado da cabeça à ponta
dos pés. O mágico acendeu seu cachimbo. Tinha um cheiro bom a fumaça que o
cachimbo dele, do mágico, emitia.
O trem ganhou
velocidade. Avançava na noite feito um tigre. Não sei se adormeci, ou se ainda
estava acordado. Talvez fosse sonho, talvez meus olhos estivessem realmente
vendo aquele rio correndo ao lado dos trilhos, cercado de girassóis azuis, e no
qual os peixes eram todos de cores exóticas. Ao longe havia montanhas em cujos
cumes um fogo intenso crepitava. Foi estranho que nem eu nem ninguém no trem
tivemos a menor reação, quando aquela cruz enorme surgiu entre as montanhas,
tingindo tudo ao seu redor de fogo, feito o sol quando se põe. Mais estranho
ainda foi ver aquele pano
roxo enorme descer sobre a cruz encobrindo tudo, inclusive as montanhas...
Talvez eu estivesse mesmo sonhando.
Sei que quando dei
por mim novamente os alto-falantes do trem anunciavam que dentro de dez minutos
chegaríamos à estação onde eu deveria descer. Notei que os outros passageiros
não estavam mais no trem. Fiquei feliz ao pensar que em vinte minutos, no
máximo, eu teria Benedita só pra mim.
Assim que o trem
parou, pulei com minha mochila, entretanto estranhei a estação, não parecia ser
mais a mesma. O mofo havia tomado conta de todas as paredes, que em muitos
lugares estava destruída ou deixava os tijolos à mostra. Havia um cheiro azedo
no ar. Pensei em tomar um café, uma cerveja, ou coisa que o valha, mas o
telhado da estação, onde ficava o bar, havia desabado. Saí da estação e a
cidade inteira não estava em melhor estado. Era absurdo que as coisas tivessem
mudado tanto em apenas três meses. O cheiro de carne podre empesteava o ar.
Nas ruas não havia
mais asfalto, apenas buracos, buracos enormes. Resolvi caminhar. Não havia viva
alma em toda a cidade, apenas aranhas, teias de aranhas e o zumbir das moscas,
alimento. Pelo menos as ruas ainda existiam, embora as casas estivessem
destruídas e as pessoas estivessem longe, invisíveis.
Dobrei uma
esquina, depois a outra, segui em frente...
Então, mesmo com
medo de olhar, avistei a casa. Como a estação e todo o resto da cidade, estava em
ruínas... Continuei ...
A porta estava escancarada, em algumas partes os tijolos apareciam porque o
reboco havia caído. Onde os tijolos ainda não apareciam, o mofo cobria tudo. Um
mofo negro, áspero.
Entrei devagar,
sentindo o assoalho velho ranger sob meus pés. Ouvi vozes baixas que vinham do quarto onde Benedita
dormia. Fui até lá. Meu coração disparou. A porta do quarto estava fechada.
Pensei em bater, mas desisti e acabei entrando de uma vez.
Havia uma velhinha
deitada na cama, segurando na mão de
uma menina de uns doze anos. Conversavam. Não pude entender o que diziam.
Aproximei-me da cama. A menina não se moveu um milímetro sequer. A velhinha,
entretanto, virou-se pra mim e sorriu. Apesar de velho, era um rosto bonito o
dela, e os olhos azuis, embora acinzentados pelo tempo, ainda brilhavam. Eu
conhecia aqueles olhos. Ela disse meu nome. Calma. Percebi pelos olhos, o
sorriso, a voz que aquela senhora ali, deitada, de alguma forma, era Benedita,
a minha Benedita. Havia uma cadeira encostada na parede. Tudo que pude fazer
foi me sentar e segurar a outra mão dela.