Por Marcia Barbieri
O rio é um mar
pequeno, infinito e tenebroso. Cavalos marinhos devorando submarinos de todas
as cores e mastigando cadáveres frescos. Carvalhos sentimentais. Cardumes de
olhos me olham. Espiões. Peixes esperando serem fisgados.
Relembrar é
estranho... É viver duplamente o que deveria ser subtraído da memória.
Reencarnações. Engulo estranhas pílulas brancas. Não se compra a paz. A
sanidade num frasco de vidro. Medley.
Duzentos anos para decompor. Tarja preta.
O divã é um
culto intelectual às emoções mortas. Lazaro e suas roupas em farrapos.
- O que você
está sentindo?
Moscas mortas.
É o que eu vejo toda vez que fecho os olhos. O perolado das moscas mortas.
Varejeiras.
- Conte mais.
O que mais você vê?
- Redes
resgatando enguias. Cristo mergulhado em ódio e silêncio. Sinestesias. Mantos
revestindo pedras. Sanguessugas cobrindo meu corpo.
- E a sua
infância? Qual o cheiro da sua infância?
- Vísceras
frescas. Leitos. Vidas submersas. Chuvas e escombros de janeiro. Velas
queimando sobre carne. Diálogos escorregando entre os vãos obscuro da portas.
- E a morte?
Você tem medo da morte?
- Não. Penso
na morte como números cabalísticos. Inevitável. Roda da fortuna.
- A morte não
te surpreende?
- A morte,
algumas vezes, não é surpreendente. Não chega feito um batedor de carteiras.
Vem mansa e certa, como a correnteza... Como uivos em noite de lua plena. Como
o suicídio previsível dos desesperados.
- E a sua
mãe, gostaria de falar dela?
- A minha mãe
estava na beira do rio comigo no colo, não me recordo nitidamente, acho que meu
irmão brincava um pouco mais distante, aí então...
- Pode
continuar.
- ... foi
então que ela perdeu os sentidos, a vida perdeu o sentido. Eu puxei-a pelos
cabelos e gritei, gritei, gritei, mas a correnteza foi levando, levando...
Ainda sinto seus cabelos escorregando entre meus dedos finos e enrugados, sua
vida se tornando fluida e transparente.
Era um
aquário, depois virou rio, depois virou mar.
- E o mar?
O mar é
apenas um rio grande, infinito e tenebroso. Tão somente... Campos ceifados.
Por Marcia Barbieri
O rio é um mar pequeno, infinito e tenebroso. Cavalos marinhos devorando submarinos de todas as cores e mastigando cadáveres frescos. Carvalhos sentimentais. Cardumes de olhos me olham. Espiões. Peixes esperando serem fisgados.
Relembrar é estranho... É viver duplamente o que deveria ser subtraído da memória. Reencarnações. Engulo estranhas pílulas brancas. Não se compra a paz. A sanidade num frasco de vidro. Medley. Duzentos anos para decompor. Tarja preta.
O rio é um mar pequeno, infinito e tenebroso. Cavalos marinhos devorando submarinos de todas as cores e mastigando cadáveres frescos. Carvalhos sentimentais. Cardumes de olhos me olham. Espiões. Peixes esperando serem fisgados.
Relembrar é estranho... É viver duplamente o que deveria ser subtraído da memória. Reencarnações. Engulo estranhas pílulas brancas. Não se compra a paz. A sanidade num frasco de vidro. Medley. Duzentos anos para decompor. Tarja preta.
O divã é um
culto intelectual às emoções mortas. Lazaro e suas roupas em farrapos.
- O que você
está sentindo?
Moscas mortas.
É o que eu vejo toda vez que fecho os olhos. O perolado das moscas mortas.
Varejeiras.
- Conte mais.
O que mais você vê?
- Redes
resgatando enguias. Cristo mergulhado em ódio e silêncio. Sinestesias. Mantos
revestindo pedras. Sanguessugas cobrindo meu corpo.
- E a sua
infância? Qual o cheiro da sua infância?
- Vísceras
frescas. Leitos. Vidas submersas. Chuvas e escombros de janeiro. Velas
queimando sobre carne. Diálogos escorregando entre os vãos obscuro da portas.
- E a morte?
Você tem medo da morte?
- Não. Penso
na morte como números cabalísticos. Inevitável. Roda da fortuna.
- A morte não
te surpreende?
- A morte,
algumas vezes, não é surpreendente. Não chega feito um batedor de carteiras.
Vem mansa e certa, como a correnteza... Como uivos em noite de lua plena. Como
o suicídio previsível dos desesperados.
- E a sua
mãe, gostaria de falar dela?
- A minha mãe
estava na beira do rio comigo no colo, não me recordo nitidamente, acho que meu
irmão brincava um pouco mais distante, aí então...
- Pode
continuar.
- ... foi
então que ela perdeu os sentidos, a vida perdeu o sentido. Eu puxei-a pelos
cabelos e gritei, gritei, gritei, mas a correnteza foi levando, levando...
Ainda sinto seus cabelos escorregando entre meus dedos finos e enrugados, sua
vida se tornando fluida e transparente.
Era um
aquário, depois virou rio, depois virou mar.
- E o mar?
O mar é
apenas um rio grande, infinito e tenebroso. Tão somente... Campos ceifados.