Desceram correndo as escadas sete ou oito jovens enfileirados. Era bem
dividido o grupo, três ou quatro homens, três ou quatro mulheres. Faziam
algazarra, estavam felizes, leves como é a cabeça na idade que tinham. Os
homens falavam graças uns para os outros e para as meninas, contavam também
piadas, mas inocentes, aquelas bem bestas, sem palavrões ou indecências. Elas
riam, achavam bobeira, como a vida toda acham que são as coisas dos homens e o
que eles dizem.
Pedro era o primeiro da fila. Ele não lembra se apenas ria ou se também
dizia besteiras, mas percebeu que estava uns cinco degraus à frente de quem o
seguia. Ela estava mais para o final, da metade da fila para trás. No último
degrau Pedro esticou a mão esquerda, segurou firme na curva do corrimão e
deixou que o corpo fosse no embalo da descida até quase o primeiro degrau do
outro lance da escada. Ali fincou a ponta do pé direito, fazendo-a de freio.
Parou e voltou um tanto de nada, feito um carrossel que encerra a diversão.
Plantou-se bem no fim do lance de escada que todos ainda desciam. Dali olhou
para o alto, ria de algo que ainda dizia ou que ainda ouvia, mas sempre olhando
para ela, vendo-a se aproximar. Passou por ele a segunda pessoa da fila,
desviando em cima; a teceira também, a quarta, a quinta. Mas ela, não desviou,
e Pedro teve a certeza – feliz – de que ela não queria mesmo desviar. E quando
já estava próxima, ele esticou para o alto a mesma mão esquerda que soltara do
corrimão. Ela pegou com a delicadeza de quem toma um lenço e veio tal como
paetê ao encontro de Pedro. Se ensaiado fosse, o movimento talvez não
conseguisse tanta perfeição. Ela veio girando, enroscando no braço dele, parou
enlaçada na cintura, agora pelos dois braços de Pedro (ele tão galante, tão
jovem no sonho, uns 25 se tanto. Ah! Quantos anos atrás Pedro
tinha 25 anos?). O último da fila passou também desviando em
cima. “Olha isso aí vocês dois, hein?”, e a galhardia prosseguiu escada abaixo
quando o grupo percebeu que os dois ficaram para trás, a sós.
Pedro era um sujeito comum, e como tal não gostava das segundas-feiras.
Mas naquela não lhe ocorriam temores e frustrações. Sentado na beira da cama às
6h30 da manhã, apenas uma angústia lhe assaltava: a de não lembrar do rosto
dela. Este fugira-lhe da mente, escorrera-lhe a lembrança feito água derramada
de um baldinho de criança na areia da praia. Como são fugazes as memórias dos
sonhos, era apenas o que Pedro lamentava naquela manhã em que o fardo de mais
uma semana incrivelmente não lhe pesava nos ombros. Fixou algum ponto do quarto
onde o dia claro ainda não alcançara. Dali, enovelou de volta o sonho. Tudo
mais era nítido, feito a manhã anunciada há pouco. A algazarra na escada, a
correria, seu gesto cavaleiro. Agora vinha a certeza de que até mesmo música
existia, em algum lugar lá embaixo do prédio, onde certamente uma festa
esperava aquele grupo feliz e em paz com a vida. Mesmo da cor dos cabelos dela,
Pedro poderia afirmar com certeza: eram castanhos claros, anelados na ponta,
chegavam no máximo aos ombros. Noite fria, céu cinzento, e Pedro lembra-se de
mais esse detalhe recortado no basculante do corredor do prédio. Por isso ela
vestia blusa de gola alta bege, talvez por cima estivesse um casaco pesado e
marrom, Pedro acha que sentiu a textura do couro legítimo quando a enlaçou e
ela sorriu seduzida. Havia um sorriso de sonho no rosto, mas do rosto Pedro não
lembrava.
- Pedro! Um avião caiu com duzentas pessoas! Todos mortos, uma
catástrofe! – bradava o redactor de notícias da pequena emissora radiofônica em que Pedro trabalhava.
Mas, de olhos e ouvidos ausentes, Pedro adentrou a ampla sala como se os pés
não tangessem o chão encardido. Cruzou mobília e computadores decadentes
flutuando feito pena que se desprendesse do pássaro que mais alto voasse sobre
a cidade.
Sorrindo para o todo e para o nada, Pedro fustigava as imagens do sonho,
tentando que se deslindasse a que mais ansiava lembrar: o rosto que sabia belo,
mas que se quedava incógnito na distância das horas que separavam Pedro do que
sonhara. O máximo a que conseguia chegar eram os olhos castanhos de penumbra e
o sorriso de felicidade sincera, de alegria de festa, de euforia de conquista.
Mas nada na lembrança de Pedro encontrava pouso na moldura de um rosto de
mulher.
- Pedro! Morreu o fabuloso astro da música pop! O mundo está
abaladíssimo! – e o velho redactor puxava cabelos ralos num ir e vir sem
destino e objetivo. Enlevado pelo sonho, Pedro sentia-se balão de gás
desprendido da mão de menino.
No meio do dia, Pedro vagava pela avenida principal sem almoço e sem
fome. Tão displicente sempre para quem passava ao lado, agora fitava todas as
mulheres no caos da cidade sem coração e dó. Verificava que rosto seria
possível sustentar o sorriso que só conheceu no mais belo dos sonhos que teve,
de toda a vida de verdade que viveu.
A estudante que abraçava os livros no ponto do ônibus; a mãe jovenzinha
que afoita entregava o filho na escola; a modelo sorridente que anunciava creme
dental no para-brisa do ônibus. O avião, o astro pop! E o mundaréu de gente se
apinhava comovida na frente do magazine para ver as TVs ligadas na vitrine. Nem
a moça que apresentava o noticiário nem a correspondente internacional, nenhuma
delas. E o sorriso flutuava sem moldura nos flashes que sobraram da madrugada.
- Pedro! Quebrou o poderoso banco estrangeiro! Faliu a grande fábrica de
automóveis! O mundo vai à bancarrota, Pedro! E os brados incansáveis do
redactor ainda eram ouvidos no fim do expediante, no corredor que recebia a
noite, mas foram sumindo à medida em que o elevador chegava à portaria que
Pedro cruzou para pegar a avenida onde todos os rostos eram apenas confusão de
sombras e luzes de neon. Talvez alguma ex-namorada, pensou sacolejando no
ônibus, mas também o passado não lhe trouxe resposta. Torceu a fechadura da
humilde quitinete e o peso de casa fechada o dia inteiro deu-lhe as vindas sem
nenhum entusiasmo. Vizinhas, colegas de emprego que teve. Cruzou a passos
curtos a sala e a solidão que por contigência há anos desposara; a professora
do primário tão nova, e despejava a sopa de pacote na tigela de água morna;
antigas colegas de ginásio, e partia cascas de pão de forma que sobraram; o
banho pingado no chuveiro elétrico, ex-namoradas de amigos. Só que nenhum rosto
capturava o sorriso do sonho na noite vazia de Pedro, no escuro do quarto em
que ele chama o sono com esperança de que venha junto o mesmo sonho e o gosto
de ser amado como nunca foi.
André Giusti é escritor e jornalista, autor de A liberdade é
amarela e conversível e A solidão do livro Emprestado, ambos da Coleção
Rocinante, da editora 7Letras. É carioca e mora em
Brasília.