6 de jan. de 2012

Abigail-Liagiba*

Por Marcia Barbieri

Abigail escorrega as mãos afetuosamente sobre a barriga dos bichos. Escolhe, entre eles, as baratas brancas. Empurra com a língua e suga. É possível escutar o barulho, como se vitrais sagrados partissem dentro do céu da sua boca.

Abigail nasceu em época remota. Na Grécia Antiga era chamada de oráculo. Seus olhos enxergavam em um raio de duzentos mil anos. Nas aldeias primitivas invocava espíritos, sacrificava crianças e virgens, pisava na fogueira, era um poderoso Xamã. Na Europa, princesa bastarda, matou com o espartilho todos os seus pretendentes, era comparada com a “Louca de Espanha”. Depois de trinta reencarnações voltou a sua cidade, lá era apenas Maria Louca. Só. Levava nos braços, dois pêndulos de aço, uma criança morta que esqueceram de enterrar. Os homens, às vezes, não escondem seus mortos. Eles são velados à vida inteira, feito uma unha encravada. Embalava, entoava cantigas de roda pra boneca com olhos de gente triste e miúda.

O marido, arquiteto de pensamento, cansado do fascínio da loucura, se apaixonou por uma doméstica nada exótica, que fazia rabada como ninguém. Socorro pegou o homem pelo rabo, literalmente.

Ao se descobrir traída e trocada tentou esfaquear o parceiro, deu cabo do cachorro da vizinha. O ato lhe rendeu a vigésima internação. Ela não se importava, afinal, o exílio era coisa de gente grã-fina. Além disso, o corredor de trinta metros e cem portas era um conto não-escrito de Cortázar. Todos os loucos são adeptos fervorosos do realismo fantástico.

Abigail, a Louca de Espanha ou mulher tarja preta, xamânica, corria nua entre os internos, era apalpada, acariciada, estapeada, eleita a musa do sanatório. Trazia no corpo as marcas da depravação. Em cada internação tatuava os amigos de hospício, aqueles que lhe satisfaziam a carne. A vida é um ato masturbatório, pensava enquanto era enrabada. “Aqui jaz minha sanidade”. Memórias remotas do subsolo, castigo sem crime, idiotas babando no meu clitóris. Os dementes costumam ser ótimos leitores, mesmo quando confundem um pouco as obras, os autores, verdade, ficção. Dadaístas também não me parecem normais. Tudo é colocado num saco e chacoalhado. O saco escrotal de Deus. O universo também aconteceu assim, num desses empurrões cósmicos.

A demência de Abigail, no entanto, era tamanha e não cabia na extensão da sua pele ou na geografia dos buracos. Coitada! Gritava, soluçava, descabelava por causa das fraturas do mundo. Não sabia que o mundo queria mais é que ela se fodesse na casa do caralho.

As internações começaram cedo, antes dos dezoito. Quando adolescente tentou enforcar o irmão mais velho, o pobre diabo tinha um olho de vidro e ainda não sabia enxergar a maldade. Ela enroscou a mão no seu pescoço, puxou a gravata com força, mas acabou se distraindo com o nó surpreendente dos dedos. Por incrível que possa parecer esse fato, Abigail jamais havia percebido que a insanidade começava nas suas extremidades. Essa noite chorou compulsivamente, arrancou as unhas com o alicate, passou gilete no braço esquerdo, no pulso não, era contra o suicídio, mordeu os lábios que ficaram grandes como duas mangas maduras. Foi a primeira das suas tantas noites de insônia. Luas vermelhas orbitavam na sua cabeça. Como alguém poderia dormir nesse lamaçal tremendo?

Sossega leão duas vezes ao dia acalmava seus nervos. Rangia os dentes grandes e amarelos. Um vergão crônico abria uma fenda da veia em direção à palma da mão. Não tendo com o que se preocupar, improvisou um calendário no abdômen. Enquanto o tempo não passava, assistia as guerras interplanetárias ao redor do seu umbigo, sentia saudade do cordão do qual despencou. Os loucos também são anatomicamente centrados.

Estrias escuras feitas com palito de sorvete abstraiam suas noites grávidas. Ela tinha a impressão que as madrugadas traziam outras madrugadas no bucho. Se tivesse uma faca experimentaria um corte longitudinal. Não era permitido objeto com ponta. Abria e fechava os olhos e o escuro continuava devorando os outros loucos. Goya. Alucinada, passava a língua seca no canto da boca infestada de aftas. Recordou dos filhotes de ratos que afogou um a um dentro da bacia de alumínio. Olhava os panos brancos quase inocentes quarando no varal.

Enjoada da mesmice do exílio elaborou algumas pautas e marcou uma reunião extraordinária com seus companheiros de partido. Incitou uma rebelião. Rasgaram as roupas, jogaram os remédios, as ampolas, as agulhas, destruíram as flores, incendiaram os colchões, não botaram fogo no próprio corpo, estavam preocupados demais com questões alheias. A revolta fracassou, como das outras vezes, os sonhadores foram mutilados, ao menos sobrou a inconsciência da derrota, afinal, eram apenas loucos. Como castigo não jantaram e foram amarrados no estrato da cama.

Uma semana depois, ainda com Joana d’Arc na alma, tentou fugir, escalou um muro de três metros, o qual dava acesso ao Jardim do Éden, antes de provar o figo da discórdia, ela foi expulsa. Caiu, trincou duas costelas, fraturou a coluna. Agora Abigail era Frida Kahlo. Dissimulou uma gangrena, decepou o próprio pé, caso contrário, não haveria verossimilhança. No diário os mesmos dizeres da artista: Piés para qué los queros si tengo alas pa’volar. Datado de mil novecentos e cinquenta e três.

Descontente com o rumo da sua vida, amarrou um lençol encardido no pescoço e ensaiou seus vôos imaginários pelos vastos corredores, escorregou no escarro denso de alguns maníacos, dançou um tango com dois enfermeiros de plantão, fumou bitucas de cigarro, tropeçou em muitas macas, sobreviveu. Mexicana insana.

Descobri que o hospital já foi um cemitério de guerra. Retiro o ralo do banheiro e procuro pelos fetos que abortei. Enrosco as falanges. Encontro somente o som de cascos trotando no líquido placentário. Aquoso, translúcido.

Abigail espelho inverso eu-ela encalacrada. Útero infecundo ao avesso. O nascimento ancestral da morte. Abigail-ela-eu mitificando a própria voz. Louca de Espanha. Mulher. Humana. Personagem.

Aqui, na rua detrás do sanatório, homens de laranja, tão análogos à pintura expressionista, recapeiam o asfalto, no cruzamento girassóis seguem cegos semáforos.
Abigail Liagiba eu-ela múltipla personalidade. Faca sem corte. Escorpiônica. Cavalos fingidos relinchando na canela da morte. Boneca russa. Eu.

*Conto publicado no livro Abigail, coletânea de contos organizada por Nelson de Oliveira e Claudio Brites.