21 de nov. de 2011

Repicam os sinos enferrujados*

Por Marcia Barbieri

“No âmago, és muito mais ainda do que supões, o teu desespero tem raízes ainda mais fundas.”

(KIERKEGAARD, S. O desespero humano.)

Um espetáculo verdadeiramente bizarro. Assistir a passagem da existência mesquinha ao nada absoluto. ‘Venha ver o pôr-do-sol, querida’. Os dias saltam e esse acontecimento volta aos meus olhos já cegos. E nem a velhice será capaz de trazer alento. Testo o limite da dor alheia. Agulhas quentes. Profundas sangrias. As figueiras ancestrais. Adão fazendo uma fenda no figo e enfiando e retirando os dedos freneticamente. Enquanto Deus cospe os caroços de um fruto desconhecido. Os anjos e seu sexo-caleidoscópio. Um fogo verde descia do céu e queimava os pelos brancos do meu braço. Antes, atravessava o chapéu de feltro amarelo escuro. Enxadas abriam trilhas na estrada. Grandes árvores se inclinavam nos barrancos. Minha saia varria e deixava rastros. Um pó denso se acumulava em minhas canelas. Caminhos bifurcados lembravam rizomas de plantas mortas. Um lagarto descansando sobre a pedra.

(Continuo) Os meus pés corriam seguindo a procissão de ninguém. Me aproximei do local. Eu sabia que não deveria ver tudo aquilo. Proibido. O desconhecido é uma puta oferecida. Adentrem. Mortes penduradas em ganchos. Exposições. Um cheiro de ferrugem entupia minhas narinas. Nunca gostei do cheiro do aço corroído. Fragilidades das coisas inertes. Os gritos eram estridentes. Eles vinham de todos os lados. De cima, de baixo, das extremidades, de dentro da minha cabeça. As minhas pernas tremiam. Uma água quente mijava entre minhas coxas. A umidade aliviou meu medo. Vulvas abertas à força. O vento batia e dava um friozinho no pé da barriga. Os nós dos meus dedos se multiplicavam impressionantemente. Depressa. Não queria voltar meus olhos para aquela cena hedionda. Embora soubesse que tudo aquilo saíra de um ventre raso ou começara dele. Escarcéus. Havia sangue por todos os cantos. No chão, nas paredes, nas minhas roupas. As minhas mãos se lavavam de um líquido denso e viscoso. A morte é uma abstração matemática. Experimento o extinguir sublime do sofrimento que não é meu. Viciado. Um tiro de cocaína pura refletida no espelho do caos.

Ruidosa. A faca range abrindo a carne fresca. A crônica de uma morte anunciada. Enquanto faziam um corte no bicho, os homens escondiam as faces envergonhadas. Era mesmo constrangedor abrir uma fêmea e descobrir que estava prenha. Com os bois é diferente, você abre e não há nada lá dentro além de uma buchada. Mas arrombar o nascimento de um ser é algo assombroso, profano, maldição, na certa. É interferir no limiar - vida e morte.

Repicam no solo os sinos enferrujados da vaca já morta. Enquanto o feto se remexe na placenta, procurando o útero morto.

Vísceras desmontam e se espalham. Púrpuras. Minha cor favorita.


*Conto publicado na atual edição da Polichinello. Aproveito a oportunidade e agradeço a gentileza de Nilson Oliveira.