Por Marcia Barbieri
“No âmago, és muito mais ainda do que supões, o teu desespero tem raízes ainda mais fundas.”
(KIERKEGAARD, S. O desespero humano.)
Um espetáculo verdadeiramente bizarro. Assistir a passagem da existência mesquinha ao nada absoluto. ‘Venha ver o pôr-do-sol, querida’. Os dias saltam e esse acontecimento volta aos meus olhos já cegos. E nem a velhice será capaz de trazer alento. Testo o limite da dor alheia. Agulhas quentes. Profundas sangrias. As figueiras ancestrais. Adão fazendo uma fenda no figo e enfiando e retirando os dedos freneticamente. Enquanto Deus cospe os caroços de um fruto desconhecido. Os anjos e seu sexo-caleidoscópio. Um fogo verde descia do céu e queimava os pelos brancos do meu braço. Antes, atravessava o chapéu de feltro amarelo escuro. Enxadas abriam trilhas na estrada. Grandes árvores se inclinavam nos barrancos. Minha saia varria e deixava rastros. Um pó denso se acumulava em minhas canelas. Caminhos bifurcados lembravam rizomas de plantas mortas. Um lagarto descansando sobre a pedra.
(Continuo) Os meus pés corriam seguindo a procissão de ninguém. Me aproximei do local. Eu sabia que não deveria ver tudo aquilo. Proibido. O desconhecido é uma puta oferecida. Adentrem. Mortes penduradas
Ruidosa. A faca range abrindo a carne fresca. A crônica de uma morte anunciada. Enquanto faziam um corte no bicho, os homens escondiam as faces envergonhadas. Era mesmo constrangedor abrir uma fêmea e descobrir que estava prenha. Com os bois é diferente, você abre e não há nada lá dentro além de uma buchada. Mas arrombar o nascimento de um ser é algo assombroso, profano, maldição, na certa. É interferir no limiar - vida e morte.
Repicam no solo os sinos enferrujados da vaca já morta. Enquanto o feto se remexe na placenta, procurando o útero morto.
Vísceras desmontam e se espalham. Púrpuras. Minha cor favorita.
*Conto publicado na atual edição da Polichinello. Aproveito a oportunidade e agradeço a gentileza de Nilson Oliveira.