No ar, mais uma edição do Especial de Poesia d’O BULE. Convidamos os leitores e seguidores do site a mergulharem nesse magma de poemas e se deixarem envolver pela magia das palavras. Os poetas e as poetas aqui reunidos representam bem a produção de poesia contemporânea, cuja marca maior é a heterogeneidade de estilos, de vozes. Como disse Octávio Paz, em Os filhos do barro, “O moderno não é caracterizado unicamente por sua novidade, mas por sua heterogeneidade”. Sem dúvida, cada poema postado aqui exige do leitor ou da leitora uma viagem única pelos desvãos da linguagem poética, “... linguagem carregada de significados”, como a definiria Ezra Pound. É com esse espírito que convidamos a todos e a todas a apreciarem a poesia de Claudio Willer (São Paulo), Nydia Bonetti (São Paulo), Paulo Kauim (Brasília), Claudio Daniel (São Paulo), Cristina Bastos (Minas Gerais/Brasília), Munique Duarte (Minas Gerais), Sylvia Beirute (Portugal), Márcio-André (Rio de Janeiro/Portugal), Abreu Paxe (Angola) e Lau Siqueira (Rio Grande do Sul/Paraíba). Para melhor fruição da leitura dos textos de cada autor e de cada autora, dividimos esta edição em três postagens: Especial de Poesia – Parte I (dia 18/11), Especial de Poesia – Parte II (dia 19/11) e Especial de Poesia – Parte III (dia 20/11).
Por Sylvia Beirute
Oração de gratidão
há toda uma gratidão em aceitar o universo.
todas as pequenas coisas formam uma grande coisa.
há um parentesco desconhecido entre todo o conhecido.
o meu mundo tem ligação directa aos deuses.
há uma força da natureza que age na raiz das constelações.
há um erro que me pensa a fim de me construir.
há uma maneira de aproximar e que me dá todas as matérias.
e todas as matérias são feitas de paz, luz e bons espíritos.
há um compromisso e uma responsabilidade de mim para mim.
o meu dia é a minha caneta, o meu papel.
e no final do dia o universo requer um pensamento
que absorve palavras absolutamente inteligentes
e que o resumem na noite brilhante.
esse pensamento é a devolução do dia em forma
de energia para o sonho seguinte, o dia seguinte,
um novo passo, um novo começo.
há uma renovação constante em mim
na maneira de me dar e de me devolver.
Segredo
o segredo é um hábito que me contém.
o que me influencia hoje é o que me vai chegando.
todo os pequenos elementos.
a minha infância continua a chegar.
definitivamente a minha infância
ainda sobe à minha respiração. e fica.
a respiração parece querer alcançar
qualquer lugar.
o isolamento é infinitivo em qualquer lugar.
mas para tal é preciso estômago e instintos.
o meu instinto é de homo sapiens.
pede renúncia ao sonho. e o sonho influencia
contrariamente.
o segredo é um hábito que me contém.
sou feliz sendo pequena. um metro e sessenta,
olhos tenros como o nome que vejo
a desfazer-se em mim.
Corpos não identificados
amam-se os nossos corpos mortos.
amam-se num amor subterrâneo: os nossos corpos mortos.
amam-se os nossos corpos mortos num muro transparente
por onde vejo ainda: os nossos corpos mortos.
amam-se na ressonância do amanhecer que desperta
leve e docemente sobre a vitamina F que os seus cabelos
conservam: os nossos corpos mortos.
amam-se na respiração limpa dando caminho a uma
contemplação de cristais, a uma porta que ora:
os nossos corpos mortos.
amam-se no sonambulismo do primeiro acto, próximo
de uma prova contrária à sede que a nuvem rejeita:
os nossos corpos mortos.
amam-se numa súbita vontade que crucificou
a metamorfose do dia de hoje: os nossos corpos mortos.
amam a emulação palpável dos presentes na
cerimónia fúnebre: os nossos corpos mortos.
porque só depois do amor, descansa a morte.
Sylvia Beirute (Porto, 1984) é uma poetisa portuguesa. Escreveu o livro de poesia “Uma Prática para Desconserto” (4Águas, 2011). É a autora do blogue de literatura “Uma Casa em Beirute”: www.sylviabeirute.blogspot.com.
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Projecto poético Nkalu a maza
Por Abreu Paxe
1. Muna ulunga da brevíssima existência
sinto em mim oposto ao medo
- lá para dentro minha pedra (brevíssima existência) -,
o viver silenciado
como se desta vez a existência
abrisse a alma que o guia muna ulunga
a calma mas próxima função
conduz-me anunciando a sedução
a noite ganha razão
como ferida a glória no duro labirinto
muito perto do sofrer
morre em mim oposto a amargura
a doçura da vida espumas de luz lá para diante:
o fracasso, a desonra. que importa a vitória
talvez sobre os dias porque alguém me esmaga a cidade
pó só pó sobre os ombros da morte o vazio
efectivamente intervalo de noites a brevíssima,
inacreditável existência (a pedra) já nada seduz
2. De tanta força brava
a seda de seus lábios jardins de tanto silêncio
nos dias de hoje chega ao sol
o mar de músculos rijos detalhes
ondeada a enxada abria meus olhos em pastos menores
às quatro da tarde meu quarto só dizia
a certo tempo um beijo meus cinco anos
vez ou outra meus olhos ainda descem o morro em força brava
3. Nkalu a maza[1][1]
interrogando um exército sou a fuga
viva experiência típica acidental idade do deserto
outros pontos fugidios o afecto traduzia-se aí a unidade das imagens ao seu lado arredondados nova falta no afecto da indecisão a tarde avoluma-se a construção
ocorre palavras após palavra sobra palavras
sinal exacto nkalu a maza fertilidade de esperas
4. Kintwadi[1][2]
tocar o céu tambor de vertigens o peito kintwadi . nem sequer sonho esta criança rasgada túnica
lambe os braços cheios de corpos profundamente idênticos em sandálias o que canto é só lavrada margem sobre a pele é um mal desatar o nó salvo regressa agora do sono mais branca pena quem a fere ou o vento raparigas tua amada noite em margens altas a memória abandonada casa seios: és palácio: estendidos já os vejo onda recuada em tudo
exaltam posto sol salga o canto pesada pena em redor perfume real pele derramada ao meu lado.
5. Talvez dobrado azul
não é verdade talvez me esqueça velhíssimo do cansaço
debaixo do pé um sinal revés o cimo a boca
só a boca a alcançar a porta morta nas luzes tristes destes lábios
6. Em sexo livre a língua
entre as trevas e a seiva da sintaxe abundam palavras
inofensivas nada dizem à pátria por imitação os impérios
renovam os aspectos os tempos os modos
outro soldado emergia
unia a habitação a fonética e a fonologia ao sol de casa
pirâmides e intervalos o corpo cego texto
regenera cidades por visitar falida interacção
as meninas árvores nocturnas com portas e janelas polares
tudo treme sobre o papel a mesma travessia dispersa tudo
Abreu Castelo Vieira dos Paxe nasceu em 1969 no Vale do Loge, município do Bembe (Uíge, Angola). É Mestre em Ensino de Literaturas em Língua Portuguesa, no Instituto Superior de Ciências da Educação, ISCED de Luanda da Universidade Agostinho Neto (UAN). Licenciou-se, na especialidade de Língua Portuguesa na mesma instituição, onde é docente, de Literatura Angolana, Introdução aos Estudos Literários e Teoria da Literatura. É Membro da União dos Escritores Angolanos (UEA), na qual é Secretário para as Relações Exteriores. È técnico de comércio externo pela escola de comércio. Publicou os seguintes livros de poesia “A Chave no Repouso da Porta” (INALD, 2003) que venceu o Prémio Literário António Jacinto e “O Vento Fede de Luz” (UEA, 2007). No Brasil, colabora e foi publicado nas Revistas Dimensão (MG), Et Cetera (PR), Comunitá Italiana (RJ), nas Revistas Electrónicas Zunai e Cronopios (SP), na Antologia Ovi-Sungo, 13 poetas de Angola, Org. pelo Cláudio Daniel (SP),” Lumme, 2007” e na Revista Literária Roda – Arte e Cultura do Atlântico Negro (MG). Em Portugal na Antologia Os Rumos do Vento, (Câmara Municipal de Fundão, 2006). E-mail: abreupaxe@gmail.com
Por Lau Siqueira
bizarro
manifesto-me
contra o que pareça
irremediavelmente
triste
manifesto-me
contra as navalhas
do absoluto
vômito desse olhar
lapidado em sentidos
impuros
e acaricio o silêncio
aos murros
condição perene
nas cheias
o rio comanda o espetáculo
e as margens são apenas
degraus para o leito mais fundo
nas secas
o rio é margem
filosofree
dialogar
com o vento
mesmo sem ar
eu tento
grafite
morrer é quase
um imprevisto
morro sempre
quando penso
que não existo
razão nenhuma
o que escrevo
é apenas parte
do que sinto
a outra parte
finjo que minto
e acredito
Lau Siqueira nasceu em Jaguarão-RS e reside em João Pessoa-PB. Publicou cinco livros de poemas e mantém o blog www.poesia-sim-poesia.blogspot.com