No ar, mais uma edição do Especial de Poesia d’O BULE. Convidamos os leitores e seguidores do site a mergulharem nesse magma de poemas e se deixarem envolver pela magia das palavras. Os poetas e as poetas aqui reunidos representam bem a produção de poesia contemporânea, cuja marca maior é a heterogeneidade de estilos, de vozes. Como disse Octávio Paz, em Os filhos do barro: “O moderno não é caracterizado unicamente por sua novidade, mas por sua heterogeneidade”. Sem dúvida, cada poema postado aqui exige do leitor ou da leitora uma viagem única pelos desvãos da linguagem poética, “... linguagem carregada de significados”, como a definiria Ezra Pound. É com esse espírito que convidamos a todos e a todas a apreciarem a poesia de Claudio Willer (São Paulo), Nydia Bonetti (São Paulo), Paulo Kauim (Brasília), Claudio Daniel (São Paulo), Cristina Bastos (Minas Gerais/Brasília), Munique Duarte (Minas Gerais), Sylvia Beirute (Portugal), Márcio-André (Rio de Janeiro/Portugal), Abreu Paxe (Angola) e Lau Siqueira (Rio Grande do Sul/Paraíba). Para melhor fruição da leitura dos textos de cada autor e de cada autora, dividimos esta edição em três postagens: Especial de Poesia – Parte I (dia 18/11), Especial de Poesia – Parte II (dia 19/11) e Especial de Poesia – Parte III (dia 20/11).
ESPECIAL DE POESIA – PARTE I
Por Nydia Bonetti
1.
desfigurado espelho
que já não
me reflete
(e a outra revela)
recôndita figura
sem sorrir
por se ver sem existir
2.
a solidão é fera
já não domesticável
: resta contê-la
eu, com meus versos
a cerco
3.
franzina, a menina me olha e sorri
se ela soubesse
da vida um terço
ainda assim
sorriria?
mãos tão pequenas
para contas tão ásperas
no interminável rosário dos dias
4.
há um pássaro que canta
todo final de tarde
triste
anunciando o fim
do dia
e o passo lento
dos bois nos pasto
tudo parece desandar
no mesmo descompasso
anunciação — epifania
noite
5.
brancos
os tigres me observam
não sabem
se me lambem ou me devoram
os tigres da memória
Nydia Bonetti, 53 anos, de Piracaia/SP, engenheira civil e poeta. Publica no blog Longitudes: http://nydiabonetti.blogspot.com/. Tem trabalhos publicados na Revista Zunái, Portal CRONÓPIOS, GERMINA LITERATURA, EUTOMIA e outros espaços literários e culturais. Deve lançar seu primeiro livro no começo de 2012.
Por Claudio Daniel
Flor Occipital
Flor occipital é o nome da cabeça.
Linhas, volumes.
Uma escrita de ossos, nervos,
orbes, lembranças.
Palavras que se perderam em algum lugar
que você evita.
Cenários que surgem de repente
como lagos, cristais,
pequenas facas
brancas.
Uma cobra que não é o Nome que escorre em seus lábios.
Árvore que não diz mais nem menos
do que
isto.
Há um aprendizado para a loucura?
Você esmaga um inseto entre os dedos
mas a sensação
permanece.
É um calafrio que você não pode explicar.
Fibras, tudo são fibras de um tecido miraculoso.
Um tapete oriental
em forma de rim,
no qual somos um minúsculo detalhe,
formiga que cavalga o dorso de um dragão.
Na palma, no pulso, na pele,
você pensou ter sentido os jogos da noite,
mãos fugidias, voz emudecida,
nenhum tabuleiro
ou peão.
Esta não é a face de um sonho,
menos luz, nenhuma membrana,
caralho, você grita
aos miolos de pão.
Formigas de ninguém atravessam de um lado a outro
o canteiro
do jardim.
Existe a ilusão do amor e os dentes, dentes, dentes.
Porque tudo é real.
A pedra que explode nas têmporas.
A Terra em forma de cálice.
A palavra que se reproduz como as aves no Palácio da Deusa da Lua.
O sentido é apenas a sombra.
Sou a fome de uma claridade que não haverá jamais.
Porque os ritmos, os ritmos, os ritmos.
Porque o riso da cadela.
Celan e a “loucura aberta de um poro”.
Nenhuma saída para parte alguma.
Caranguejos à deriva na chuva, um retrato, um nome
que não é a cobra
que não escorre
em teus lábios.
Jogar-se na sombra em busca do sentido de mascar folhas de cobre.
Jogar-se na sombra em busca do íntimo escaravelho
tatuado na buceta
da Senhora Linguagem.
Jogar-se na sombra porque pedra é mais do que grito é mais do que esquilo
é mais do que o turvo
uivo
da lacraia.
Escrever poesia não é um trabalho para homens delicados.
Flor occipital é o nome da cabeça.
Aqui estão todos os jogos, todos os mapas, todas as palavras,
inclusive aquelas por inventar.
Flor occipital é o nome da cabeça.
Tua voz.
Tuas faces.
Tuas mandalas de ternura e escárnio.
A desfiguração de linhas no corpo convulsivo, explodindo lêmures.
Esmeralda.
Tudo se inicia e termina com a encantação da esmeralda.
À memória de Rodrigo de Souza Leão, 2011
Cores para cegos
(Paisagem urbana)
Estranha água, sede multiplica a sede, multiplica-a em filetes de capulhos.
Que abismo é maior do que o medo?
Nenhum destino, sombra esquálida flanqueada por cutelos.
Fêmea esfomeada amamenta o filhote com a única teta.
Bico-de-papagaio. Pele dispersa, reduzida ao escorço de uma paisagem do mundo flutuante.
Tanta desmesura.
Moídos maxilares, rosto encurvado, ossos que tentam fugir dos dedos.
Céspede nenhum. Aspérula nenhuma. Vocabulário abolido, evisceração das falas.
Tanta delicadeza.
Pedra ao contrário exibe sua entranha: cunhas disformes, irregulares, multíplices, que abismo é maior do que o medo?
Na órbita de uma lacraia estrelas coxas se entredevoram.
(poemas publicados, originalmente, no site Cronópios e cedidos pelo autor.)
Por Paulo Kauim
1984
hoje acordei mais vivo
como uma pedra
que de manhã
molha seus pés na água
hoje foi o sol
quem acordou mais tarde
feito um poeta do século passado
com as faces rosadas
de tanto gim
o dia será fausto
se sobrar tempo
escreverei um poema
falando de obsessão
perversão
e
blasfêmias
biu
meu
pai
em
pernambucana prosódia
entre
calos
entre
canas
repete
:
a
melhor
religião
é
o
outro
antígona
só
eu
minha
vida
sem
corifeu
ao homem que nunca saiu da asa norte
um dia
ser
gabriel beckmann
furar
a asa
de bike
amolar
sua
melopeia
dechavar
sua não
sintaxe
fazer
da palavra
um búzio
cantar a ode barroco-futurista
pros lumpens
do conic
(Do livro de poesias ‘demorô’, Thesaurus Editora, 2008.)
Paulo Kauim é professor e poeta. Vive em Brasília. Publicou, em 2008, pela Thesaurus Editora, o livro de poemas ‘demoro’. Mantém o blog DA W3