18 de nov. de 2011

Novo Especial Poesia n'O BULE

No ar, mais uma edição do Especial de Poesia d’O BULE. Convidamos os leitores e seguidores do site a mergulharem nesse magma de poemas e se deixarem envolver pela magia das palavras. Os poetas e as poetas aqui reunidos representam bem a produção de poesia contemporânea, cuja marca maior é a heterogeneidade de estilos, de vozes. Como disse Octávio Paz, em Os filhos do barro: “O moderno não é caracterizado unicamente por sua novidade, mas por sua heterogeneidade”. Sem dúvida, cada poema postado aqui exige do leitor ou da leitora uma viagem única pelos desvãos da linguagem poética, “... linguagem carregada de significados”, como a definiria Ezra Pound. É com esse espírito que convidamos a todos e a todas a apreciarem a poesia de Claudio Willer (São Paulo), Nydia Bonetti (São Paulo), Paulo Kauim (Brasília), Claudio Daniel (São Paulo), Cristina Bastos (Minas Gerais/Brasília), Munique Duarte (Minas Gerais), Sylvia Beirute (Portugal), Márcio-André (Rio de Janeiro/Portugal), Abreu Paxe (Angola) e Lau Siqueira (Rio Grande do Sul/Paraíba). Para melhor fruição da leitura dos textos de cada autor e de cada autora, dividimos esta edição em três postagens: Especial de Poesia – Parte I (dia 18/11), Especial de Poesia – Parte II (dia 19/11) e Especial de Poesia – Parte III (dia 20/11).

ESPECIAL DE POESIA – PARTE I

Por Nydia Bonetti

1.

desfigurado espelho

que já não

me reflete

(e a outra revela)

recôndita figura

sem sorrir

por se ver sem existir

2.

a solidão é fera

já não domesticável

: resta contê-la

eu, com meus versos

a cerco

3.

franzina, a menina me olha e sorri

se ela soubesse

da vida um terço

ainda assim

sorriria?

mãos tão pequenas

para contas tão ásperas

no interminável rosário dos dias

4.

há um pássaro que canta

todo final de tarde

triste

anunciando o fim

do dia

e o passo lento

dos bois nos pasto

tudo parece desandar

no mesmo descompasso

anunciação — epifania

noite

5.

brancos

os tigres me observam
não sabem
se me lambem ou me devoram
os tigres da memória

Nydia Bonetti, 53 anos, de Piracaia/SP, engenheira civil e poeta. Publica no blog Longitudes: http://nydiabonetti.blogspot.com/. Tem trabalhos publicados na Revista Zunái, Portal CRONÓPIOS, GERMINA LITERATURA, EUTOMIA e outros espaços literários e culturais. Deve lançar seu primeiro livro no começo de 2012.


Por Claudio Daniel

Flor Occipital


Flor occipital é o nome da cabeça.

Linhas, volumes.

Uma escrita de ossos, nervos,
orbes, lembranças.

Palavras que se perderam em algum lugar
que você evita.

Cenários que surgem de repente
como lagos, cristais,
pequenas facas
brancas.

Uma cobra que não é o Nome que escorre em seus lábios.

Árvore que não diz mais nem menos
do que
isto.

Há um aprendizado para a loucura?

Você esmaga um inseto entre os dedos
mas a sensação
permanece.

É um calafrio que você não pode explicar.

Fibras, tudo são fibras de um tecido miraculoso.
Um tapete oriental
em forma de rim,
no qual somos um minúsculo detalhe,
formiga que cavalga o dorso de um dragão.

Na palma, no pulso, na pele,
você pensou ter sentido os jogos da noite,
mãos fugidias, voz emudecida,
nenhum tabuleiro
ou peão.

Esta não é a face de um sonho,
menos luz, nenhuma membrana,
caralho, você grita
aos miolos de pão.

Formigas de ninguém atravessam de um lado a outro
o canteiro
do jardim.

Existe a ilusão do amor e os dentes, dentes, dentes.

Porque tudo é real.

A pedra que explode nas têmporas.

A Terra em forma de cálice.

A palavra que se reproduz como as aves no Palácio da Deusa da Lua.

O sentido é apenas a sombra.

Sou a fome de uma claridade que não haverá jamais.
Porque os ritmos, os ritmos, os ritmos.
Porque o riso da cadela.

Celan e a “loucura aberta de um poro”.

Nenhuma saída para parte alguma.

Caranguejos à deriva na chuva, um retrato, um nome
que não é a cobra
que não escorre
em teus lábios.

Jogar-se na sombra em busca do sentido de mascar folhas de cobre.

Jogar-se na sombra em busca do íntimo escaravelho
tatuado na buceta
da Senhora Linguagem.

Jogar-se na sombra porque pedra é mais do que grito é mais do que esquilo
é mais do que o turvo
uivo
da lacraia.

Escrever poesia não é um trabalho para homens delicados.

Flor occipital é o nome da cabeça.

Aqui estão todos os jogos, todos os mapas, todas as palavras,
inclusive aquelas por inventar.

Flor occipital é o nome da cabeça.

Tua voz.

Tuas faces.

Tuas mandalas de ternura e escárnio.

A desfiguração de linhas no corpo convulsivo, explodindo lêmures.

Esmeralda.
Tudo se inicia e termina com a encantação da esmeralda.

À memória de Rodrigo de Souza Leão, 2011

Cores para cegos
(Paisagem urbana)


Estranha água, sede multiplica a sede, multiplica-a em filetes de capulhos.

Que abismo é maior do que o medo?

Nenhum destino, sombra esquálida flanqueada por cutelos.

Fêmea esfomeada amamenta o filhote com a única teta.

Bico-de-papagaio. Pele dispersa, reduzida ao escorço de uma paisagem do mundo flutuante.

Tanta desmesura.

Moídos maxilares, rosto encurvado, ossos que tentam fugir dos dedos.

Céspede nenhum. Aspérula nenhuma. Vocabulário abolido, evisceração das falas.

Tanta delicadeza.

Pedra ao contrário exibe sua entranha: cunhas disformes, irregulares, multíplices, que abismo é maior do que o medo?

Na órbita de uma lacraia estrelas coxas se entredevoram.

(poemas publicados, originalmente, no site Cronópios e cedidos pelo autor.)


Claudio Daniel é poeta, tradutor e ensaísta. Publicou os livros de poesia Sutra (1992), Yumê (1999), A sombra do leopardo (2001), Figuras Metálicas (2005), Fera Bifronte (2009), a plaquete Letra Negra (2010) e o volume de contos Romanceiro de Dona Virgo (2004), entre outros títulos. Organizou os eventos literários internacionais Galáxia Barroca e Kantoluanda, em 2006, e foi curador, ao lado de Virna Teixeira, do Tordesilhas, Festival Ibero-Americano de Poesia Contemporânea, realizado em 2007, em São Paulo, e do II Festival Tordesilhas, Poetas de Língua Portuguesa, que aconteceu em 2010, em Lisboa. É editor da revista eletrônica de poesia e debates Zunái (www.revistazunai.com) e mantém o blog Cantar a Pele de Lontra (http://cantarapeledelontra.blogspot.com). Atualmente, é curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo (CCSP). E-mail: claudio.dan@gmail.com

Por Paulo Kauim

1984

hoje acordei mais vivo

como uma pedra

que de manhã

molha seus pés na água

hoje foi o sol

quem acordou mais tarde

feito um poeta do século passado

com as faces rosadas

de tanto gim

o dia será fausto

se sobrar tempo

escreverei um poema

falando de obsessão

perversão

e

blasfêmias

biu

meu

pai

em

pernambucana prosódia

entre

calos

entre

canas

repete

:

a

melhor

religião

é

o

outro

antígona

eu

minha

vida

sem

corifeu

ao homem que nunca saiu da asa norte

um dia

ser

gabriel beckmann

furar

a asa

de bike

amolar

sua

melopeia

dechavar

sua não

sintaxe

fazer

da palavra

um búzio

cantar a ode barroco-futurista

pros lumpens

do conic

(Do livro de poesias ‘demorô’, Thesaurus Editora, 2008.)

Paulo Kauim é professor e poeta. Vive em Brasília. Publicou, em 2008, pela Thesaurus Editora, o livro de poemas ‘demoro’. Mantém o blog DA W3