Por Daniel Lopes
Há escritores que investem todas as suas energias na trama, urdindo histórias tão fantásticas que muitas vezes só podem ser narradas de maneira simples e direta, como se o narrador fosse um amanuense. Franz Kafka e Murilo Rubião fazem parte deste time. Há escritores que voltam seus esforços sobre a linguagem. O código é o alvo. À trama não é dada tanta importância. São os virtuoses. Se fossem guitarristas seriam Edie Van Halen, ou Stevie Vai. Como são escritores, chamam-se James Joyce, Lobo Antunes, Oswald de Andrade. Existem também escritores que criam tramas poderosas, escritas numa linguagem ainda mais poderosa. As dark plays, de Shakespeare, ou o Grande Sertão, do Rosa, são exemplos. Há ainda escritores, ou escritoras, que usam da pena como quem usa de uma britadeira. Estão escavando. Tanto a trama quanto a linguagem são meros instrumentos para algo que está além da escrita. A palavra aqui é instrumento de busca para o mistério amorfo da condição humana e da própria linguagem. Escrevem assim Clarice Lispector e Katherine Mansfield, entre outras. Mas há alguns escritores, ou melhor, algumas obras de certos escritores, que não nos seduzem pela trama, pela busca, ou pela linguagem, e sim por um certo estranhamento diante do absurdo que é a vida. O cotidiano e o banal nos são esfregados na face de forma tão nua que ficamos com um gosto amargo na boca e uma sensação terrível de vazio. Exemplos? O estrangeiro, do Camus, Esperando Godot, do Beckett, A cantora careca, do Ionesco e também Relógio Sem Sol, do Cadão Volpato, livro que me surpreendeu demais.
Relógio Sem Sol é um livro pequeno, 115 páginas. Três short long story divididas em duas partes: Relógio Sem Sol, dois contos, e Homem Sem Ouro, um conto. Parece pouco, né? Parece, mas não se enganem, leitores, os relógios são maiores por dentro e, quando abertos, revelam mundos estranhos... Indefiníveis.
O estranhamento começa logo de cara, porque há histórias demais para títulos de menos. Então, ou nenhuma das três histórias tem título, ou as duas histórias da primeira parte têm o mesmo título, ou as três histórias podem estar separadas, mas serem unidas por um fio condutor invisível. Tudo é possível, porque o narrador nunca mantém um esquema linear, mas vai e volta o tempo todo, atrasando ou adiantando seu relógio como bem lhe convém. É como se estivéssemos vendo fotos aleatoriamente, sem qualquer preocupação cronológica. Ora estamos no século XXI, ora estamos nos anos sessenta, setenta, ou oitenta do século passado. Não é um jogo simples, véus e desvendas. E o pior é que há um nível de importância para determinados fatos nos serem revelados e outros não, entretanto tudo o que é contado parece ser extremamente banal, cotidiano. Observamos as personagens se movimentarem, como se estivessem em busca de algo, mas do que? Elas, as personagens, são como espelhos no escuro, relógios sem Sol. Sentimos que Miguel... Ilíria... David... Solange estão orbitando em volta de algo, mas este algo não é o Sol, é o nada, o vácuo, o absurdo da existência que não tem fim Sublime algum. De certa maneira, o livro do Cadão nos remete a O Estrangeiro, do Camus, mas a experiência aqui é ainda mais radical, porque Mersault, ainda que não soubesse, girava ao redor de um crime, de um assassinato, era atraído por ele, ainda que não tivesse vontade de matar. Aqui não há sequer um crime. Só existe o vazio, sem revolta, sem nada além de um conformismo melancólico. É como pensa Miguel, observando o filho, num determinado momento do primeiro conto: “Por favor, não chore... o tempo está ruim para todo mundo”. O livro todo me lembrou um certo niilismo drummondiano, mas este trecho, talvez por também acontecer numa praia, me fez recitar Consolo na Praia baixinho.
O Sol é outro elemento que, como nO Estrangeiro, ocupa um papel importante na trama, a começar pelo título. Todo o tempo vemos referências ao astro rei. Talvez, por isso mesmo, considerei Relógio um livro extremamente apolíneo. Nietzsche definiu como apolíneo tudo o que é ligado ao claro, ao racional, ao direito, ao másculo, ao pictórico. Em contraposição, temos o dionisíaco, ligado a tudo o que é escuro, intuitivo, esquerdo, feminino, musical. Determinadas cenas do livro do Cadão são quase que pinturas. Um exemplo: “Em alguma praia deserta ao Sul da Bahia, o menino sacode um peixe metálico na porta da cabana, cujo retângulo de luz cega o interior. Miguel está deitado numa esteira, reluta em acordar, tudo está acontecendo de manhã”. Pode ser viagem minha, mas o retângulo de luz me fez lembrar Piet Mondrian. Numa tela cairia tão bem quanto numa página. O lado Dionisíaco, o ritmo, pode ser contido, uma música de câmara, como disse Marçal Aquino, as cores e formas, no entanto, são exuberantes.
Escrevi os quatro parágrafos anteriores há umas dez horas, hoje pela manhã. Agora são 20:26 do dia 27 de abril de 2011. Quebrei a cabeça a tarde inteira, procurando um gran finale para esta resenha. Queria algo poderoso, que transmitisse todo o meu entusiasmo durante a leitura dos três contos. Vislumbrei agora há pouco uma ideia. Seguinte, acredito que o Brasil tem grandes escritores, mas existem três que, pra mim, são soberanos, estão fora de qualquer batalha canônica. São eles: Campos de Carvalho, Guimarães Rosa e Raduan Nassar. O que isso tem a ver com o meu gran finale? Bem, há uns oito ou dez anos, fui ao cinema. Enquanto esperava o filme começar, peguei uma revista do Instituto Moreira Salles sobre o Raduan Nassar, estava jogada na mesinha do café. Havia ali um conto chamado Hoje de madrugada. Comecei a ler. Parecia uma história tão comum, narrada de uma maneira tão simples, mas por trás daquela cena singela havia um universo de desencontros. O filme começou, estávamos eu, minha mulher, que na época era namorada, e mais uma amiga. Elas me chamaram. Continuei lendo. Elas entraram para ver o filme. Continuei lendo. Depois de terminar a leitura, reli o conto inteiro. Quando entrei na sala, já tinha passado mais de meia hora de filme. Minha mulher, que na época era namorada, brigou um bocado. Não consegui prestar atenção em nada do que passava na tela. Estava perplexo com a história do Raduan. De ontem pra hoje experimentei a mesma sensação outra vez, depois que o carteiro entregou Relógio Sem Sol aqui em casa... é uma espécie de êxtase triste, deixa um gosto estranho na boca que nem pipoca, nem coca-cola, nem comédia americana conseguem arrancar. Puta livro.
Daniel Lopes tem textos publicados nas revistas literárias Amálgama, Meio Tom, Germina e Escritoras Suicidas. Publicou em 2008 o romance É preciso ter um caos dentro de si para criar uma estrela que dança, em 2010 publicou o livro de contos Pianista boxeador. Foi vencedor do prêmio Valeu Professor 2010, categoria conto. E-mail: danielopes26@yahoo.com.br Daniel Lopes, um cosmos.