13 de jun. de 2011

Como escrever um cânone ou o valor estético da obra - Malagueta #14

por Marcia Barbieri

Todas as tardes no trabalho, enquanto eu tomo o meu café preto, me perco nas construções desarmoniosas, nas biqueiras, nas vielas, na arquitetura rústica dessa parte do mundo. A beleza caótica da periferia me fascina. Uma flanêur, com certeza seria dessa forma que João do Rio me classificaria dentro da alma encantadora das ruas.

Há vários meses percebo que existe uma igreja em fase de acabamento, ela parece esquecida, como se depois de tanto tempo preocupados com o alicerce ninguém mais soubesse que rumo dar a essa quase ruína contemporânea. As palavras dentro de alguns textos, às vezes, se assemelham muito com essas construções sagradas. Elas possuem forma, estrutura, peso; a tal da materialidade. No entanto, não passam de um esqueleto calcificado, desprovido da flexibilidade e do ornamento da carne. Gosto muito de uma das definições de Heidegger: “Para se ouvir um puro ruído temos que afastar das coisas e escutar, distanciar delas o nosso ouvido, ou seja, escutar abstratamente”[1]

Outro filósofo que expressa sua ira contra a linguagem sem alma é Cioran em História e utopia. Discutindo sobre a distinção da língua francesa, ele afirma sentir saudades do cheiro de frescor e de podridão, da mistura de sol e de bosta, da feiúra nostálgica, da soberba descompostura da sua língua natal.

Essa descompostura, esse frescor podre também é essencial na Literatura. Mas como encontrar o gemido da palavra, o ruído descrito por Heidegger, o sangue clamado por Cioran? A palavra que romperá a narrativa feito uma fratura exposta do fêmur e se fará discreta, lúcida, imortal.

É isso, imortal. Ah, como a morte me atormenta!!! Desconfio que se fosse eterna jamais escreveria, não ousaria tirar as letras do lamaçal em que se encontram: “Todas juntas e à minha disposição, aparentemente limpas, estão imundas e transformaram-se, tanto tempo, num amontoado de ciladas.”[2]. É como tirar os caranguejos do mangue e imaginar que ao chegar a casa eles ainda ajam como caranguejos.

Aparentemente não existe uma relação direta entre a morte, o cânone e o valor estético da obra de arte. Entretanto se pararmos e refletirmos um pouco perceberemos que a única coisa a impulsionar a vida é o medo da morte. Não seria diferente dentro do mundo literário: “Um poema, romance ou peça adquire todas as perturbações humanas, incluindo o medo da mortalidade, que na arte da literatura se transforma na busca de ser canônico, de entrar na memória comunal ou da sociedade”.[3]

Escrevemos na intenção tola de nos perpetuarmos, alguns acreditam na ciência, na evolução dos nanos que trará a vida semi-eterna, e românticos como nós, escritores, cremos que seremos lidos pelas gerações futuras; enquanto nossos corpos se decompõem na cova, nossa ficção manterá nossos genes, nossos sonhos. O falo e o esperma contido na obra ficcional são nossos alentos.

Você com certeza deve estar se perguntando, você não daria dicas sobre como escrever uma obra canônica? E você tem toda razão, eu daria, porém percebi o tamanho da minha pretensão no meio do caminho. Posso apenas afirmar que como escritora defendo as metáforas, as imagens, a mistura sincera de gêneros, a vida encalacrada na ficção e a ficção não conseguindo se desvencilhar da vida. Segundo Heidegger ser-obra é instalar um mundo. Então, aí está um bom conselho: construa mundos. Também estou vasculhando à procura de universos. Talvez a minha literatura não permaneça. Contudo não abro mão das minhas convicções. Estou pouco ligando para os escritores, donos de verdades compradas, que defendem uma literatura jornalística, pseudossocial e que exigem narrativas enxutas e sem adjetivos. Para eles eu cito Cioran: “O próprio Deus só vive pelos adjetivos que acrescentamos a ele. Assim, o homem, qualificando sempre diferentemente a monotonia de sua infelicidade, só se justifica ante o espírito pela busca apaixonada de um adjetivo novo.”[4]

Outra coisa, se eu estiver errada não estarei aqui pra ver, é necessário um longo tempo para que a sociedade reconheça o valor estético de uma obra.

A intenção era ser um pouco mais ardida, mas a presença do nada e depois essa lua, esse conhaque, esse Drummond me botaram comovida pra diabo...



[1] HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte.

[2] Torquato Neto

[3] BLOOM, Harold. O cânone ocidental.

[4] CIORAN, Emil. O breviário da decomposição.