16 de mai. de 2011

A limusine de Silvinha


Silvinha é uma dessas tontinhas que sonham em se casar virgens no mês de maio e que esbarram no sonho íntimo; no caso dela, também na farsa de continuar se declarando casta e imaculada. Não se revolte com este autor amigo que lhe tem tanto apreço, senhorita leitora; só falo da vida que, escapulindo pela imaginação, vai transgredindo formas traçadas por antecipação. De modo que escrevo aqui apenas a história de Silvinha e Pedro M. de Araújo, este bem mais velho que ela, imenso, super-requintado e riquíssimo. Seo Pedro, entretanto, é a certeza que Silvinha precisa de um futuro feliz – seja pelo dote imediato, seja por vindoura e bem próxima partilha dos bens.

Casaram-se, os pombinhos cinza. Silvinha mudou-se para belo apartamento no bairro mais valorizado da cidade. Vive no shopping center das grandes marcas balofas mundiais comprando roupas sofisticadas do trevo, gasta outro tanto de sua energia na academia de ginástica da Consolação. Anda para cima e para baixo de limusine e motorista particular, e muitos seguranças de escolta. Chama afetivamente a imensa limusine de Carruagem de Fogo. Ela cumpre com louvor o ofício de dama de sociedade, tanto que sente as línguas afiadas e os olhos cumpridos de outras damas de sociedade percorrendo-lhe a áurea. Ameniza este infortúnio tomando chá gelado com as amiguinhas em salões triviais da alta casaca, embora odeie chá. Além disso, come mal; frutas, conservas, arroz integral e algumas outras imitações de alimentos a base de soja. Pobre mocinha! Porém suporta a tudo muito bem, não fosse o terrível fato psíquico que a atormenta: não ama o marido, nem com as mensagens otimistas que recebe do horóscopo. A terapia também não a ajuda muito. Vive suspirando... Oh, vida cruel e desmedida! Mas esforçava-se muito para ser requintada, recita poemas. Versos e mais versos daquela velhinha do sul com jeito de cozinheira sisuda ou outra antologia ordinária de dez, vinte volumes. Às vezes vai à missa, mas o catolicismo dá-lhe beliscões na bunda; então se entedia rapidamente, e mais nada. Desiste de purificar-se, como ela mesma diz. Aí torna à sua luxuosa Carruagem de Fogo. Regressando então ao shopping balofo, compra mais roupas sofisticadas nas lojas de marcas mundiais. Depois volta para casa e, assim que tropeça no carpete oriental do hall de entrada, deixa-se cair no vasto sofá, com ares de canapé de outro século, e tudo mais é silêncio agonizante, de infinita devassidão, atenuado apenas pelo tic-tac sempre atrasado e arrastado do relógio de pêndulo mecânico com peças suíças e holandesas preso a antigo móvel de mogno escuro que ocupa boa parte de uma das paredes da sala de estar e cuja imagem de São Gabriel na ponta extrema quase alcança o teto. Tic-tac, tic-tac, tic-tac... Pêndulo maldito! O estado de angústia que acomete a desgraçada mocinha é sedutor como o diabo trajado de black-tie.

- Meu Deus! Vou ficar louca, louca, louca... – grita ela, correndo à ampla sacada, bebericando algum drinque de colorização lilás, muito afetada que fica pelas vozes que ouve entre miolos e qual faz o mordomo, e às vezes demais empregados do enorme apartamento, a vir lhe consolar em meio a lamentos dissimulados.

- Que houve, querida? – interessa-se em saber o mordomo com ares de serviçal francês do Mercadão e sotaque inglês da Vila Piratininga quando a surpreende nestes artifícios de ciências psicológicas e pragmatismo social.

- Estou morrendo, Demóstenes! Estou morrendo...

- Oh, não diga isto, lady Silvinha! A senhora é tão jovem e bela...

Silvinha comporta-se com distinção entre seus pares nos salões públicos, só em casa é que ela é dada a chiliques. O marido não gosta nada de flagrá-la desta maneira; não fica bem para uma dama, avalia ele.

- Recomponha-se, Silvinha! Onde já se viu? Fique maluca no spa ou outras clínicas, mas não na frente de outros; ora! – Seo Pedro raia com ela assim, entre vergonha alheia e afagos.

- Amor... me desculpe – choraminga Silvinha, toda manhosa –, acho que ando mesmo um pouco estressada; é esta cidade mal educada e cheia de gente feia...

Ah, mas não há casa de recuperação melhor à jovem lady do que os seus passeios de limusine pela metrópole. Dá ordem ao chauffeur para que ele vá sempre em frente, sem destino objetivo, por ruas e ruas, avenidas e avenidas, alamedas e bulevares diversos e desconhecidos. Onde o trambolho gigantesco consiga meter as rodas sem estourar os pneus, Silvinha manda entrar. Dentro daquele automóvel de grande porte e luxuoso ela sente saudade de sua vida de debutante, é um sentimento parecido com a sombra acinzentada de um passado cor-de-rosa. A saudade dela é assim, leitor, uma angústia de se saber irrealizada. Dentro daquela carruagem encantada Silvinha não quer ser uma rainha, ela deseja apenas ser a mocinha d’alguma novela antiga e feliz. Ora, leitor sem a nobreza de príncipe, todo mundo tem em algum lugar o seu baluarte da vida; não é mesmo?

A leitora que já estiver olhando torto para a imagem do autor, refletida n’algum lugar desta página, achando Silvinha uma personagem muito fútil, digo que está errada em teu julgamento. Silvinha não é frívola. Também não tem vaidade excessiva; ela nem mesmo olha-se no espelho. Embora isto seja uma renúncia calculada, ela receia ver ao espelho o reflexo de outra pessoa que não a si própria. Penteia desvelos pelas manhãs, sai do quarto e espera que duas cabeleireiras a produzam bela e elegante, antes mesmo de sentar-se ao café, pronta para os seus inúmeros compromissos de madame do Jardim Europa. E não rias, leitora! Se puder, chore por Silvinha. Ela tem é uma vida de muita abnegação, minha senhora. Ou achas que é fácil reprimir os impulsos da juventude e o prazer dos sonhos? Rica, sim! Mas pobre dona Silvinha M. de Araújo!... É aquilo que em algum dia alguém já disse: o antagonismo está no ser humano, e em tudo o mais. Para compensar o sacrifício de fingir amar um marido velho, à dedicação de mostrar-se esposa boa e educada, nada mais justo, portanto, que Silvinha tenha todo o conforto, segurança, sofisticação... e um jovem, moreno, viril e atencioso chauffeur particular que a dispa com os olhos pelo retrovisor de sua limusine blindada.


* Publicado no livro de contos Perfumes da Pátria, Ricardo Novais, Bookess, S. Paulo, 2011.