18 de mai. de 2011

The girl with the thorn in his side

Por Daniel Lopes

Um crítico deve ser flexível. Não é a obra que deve se adaptar à visão do crítico e sim o contrário. Com o espírito aberto, a primeira coisa a fazer é observar qual a intenção do autor e o tipo de público que ele deseja atingir. Depois, é necessário analisar se o autor fez bem aquilo que se propôs a fazer. Nem todo mundo quer ser Shakespeare. O problema com a crítica que temos é que ela ainda não percebeu isso e, se percebeu, não tem competência e desprendimento para analisar uma obra pop por aquilo que ela deseja ser: POP. Simplesmente.

Falei essas coisas a respeito da crítica porque terminei de ler Alameda Santos, da Ivana Arruda Leite. Gosto de Shakespeare e gostei do livro da Ivana. Cada um no seu quadrado. Shakespeare é Shakespeare. Ivana é outro papo, tenta desvendar a condição humana por meio do desbunde... do riso, mas não pensem que é um riso fácil... solto. Não Senhor. Nada disso. O nosso riso, lendo Alameda Santos, é o mesmo riso dolorido de quando lemos Dom Quixote, ou de quando ouvimos The Smiths e a melodia solta e leve de Johnny Marr nos faz acreditar que o som induz ao sorriso. Só que aí prestamos atenção às letras do Morrisey e nosso riso se torna enviesado, como se houvesse um espinho ao lado... inflamando... enchendo de pus... nossa comédia.

Acho que fui feliz na comparação com os Smiths, porque a música, inclusive com trechos transcritos, atravessa toda a obra. Não tanto o Rock, mais a música popular brasileira. Música é música, não é? Se fosse pintura, poderíamos dizer que o som é como uma imensa diagonal cortando a tela. O próprio texto são as fitas que a protagonista grava todo final de ano, enquanto toma umas e outras e relembra as desventuras. Até a capa do livro parece a capa de um daqueles elepês new wave dos anos 80. POP.

Contudo, não é só a música, nem só o desbunde que compõem o romance. Há muito mais coelhos nessa cartola. Ralph Waldo Emerson, gênio, afirma em um de seus Ensaios que não existe História, só Biografia. O livro da Ivana funciona como uma prova dos nove dessa afirmação. Vai vendo. Durante o desenrolar da narrativa, a protagonista (não nomeada) tenta de tudo para dar sentido à existência. Do marxismo à magia. Da vida na cidade à vida no sítio. Da renovação carismática católica a Nietzsche. Ocorre aqui, no microcosmo da ficção (ficção?) o mesmo que ocorre no macrocosmo da História. Na mesma época em que a narradora (a própria Ivana?) batia a cabeça nas arestas do mundo e de seus relacionamentos, procurando encontrar um rumo; o país saía da ditadura militar, lutava por diretas, enterrava Tancredo ao som de coração de estudante, encarava Sarney e a inflação, Fernando Collor e o assassinato de Daniela Perez. De certa maneira, é o que Milan Kundera sempre fez de forma magistral, mas sem o veio cômico.

Outro ponto interessante do livro é que, a seu modo meio tresloucado, ele também é um romance de formação, Um Retrato do Artista Quando Jovem, embora a Artista não seja tão jovem assim. Nada é mesmo convencional aqui. O fato é que vemos um coração sensível, perdido, artístico, se debatendo contra o mundo, essa máquina de moer gente. Não é no primeiro plano, mas ao fundo que vemos grassar o sonho da escrita. Esse sonho que, ao mesmo tempo em que conforta, também destrói um bocado de gente. “Os artistas estão mesmo fodidos nesse mundo”. É isso que a voz de Ivana, ela mesma, nos diz em suas fitas, ora sussurrando, ora vociferando, conforme o lirismo dos bêbados e dos clowns de Shakespeare. The girl with the thorn in his side.

O livro grita ainda outra verdade, um misto de Nelson Rodrigues: “Só os neuróticos verão a Deus” e Allen Ginsberg santo, santo, santo, tudo é santo”. Os santos, digo, os personagens de Ivana Arruda Leite são todos neuróticos. Charles (o mais doido), Eduardo, Tereza, Caio, Guto, todos são desajustados. Todos queimam e queimam e queimam como o Dean Moriarty de Kerouac. Todos estão se debatendo com a vida e enfrentando a moral comum e hipócrita. Todos se machucam. Ninguém sai ileso de um confronto assim. O mundo é foda. Viver é difícil. Essa é uma das idéias.

Poderia ficar falando aqui a tarde toda sobre o livro. Também sou meio verborrágico, feito a narradora, mas é preciso terminar. A vida ruge lá fora. Fico imaginando então, pra concluir, não a influência de Ivana em Alameda Santos, mas a influência de Alameda Santos em Ivana de Arruda Leite. É um livro-catarse, esse, um acerto de contas com a vida e com o passado. Algo que paira sobre o céu da literatura brasileira hoje. Andréa del Fuego escreveu Os Malaquias, Michel Laub escreveu Diário da queda. Não sei a que conclusões Ivana chegou ao término do livro, não consigo sequer fantasiar. Como leitor, se pudesse dizer alguma coisa, diria só:

- Valeu a pena, Ivana, outros corações encontram agora espelho e consolo no seu coração. – E não é essa mesma uma das razões da Arte? Chegar até outros corações cansados como o nosso e dizer que eles não estão sozinhos... que, apesar de todos os Fortes do Mal, formamos uma corrente? Corrente e não pirâmide, que pirâmide dá muita confusão.

Beijo e até ano que vem.

Daniel Lopes tem textos publicados nas revistas literárias Amálgama, Meio Tom, Germina e Escritoras Suicidas. Publicou em 2008 o romance É preciso ter um caos dentro de si para criar uma estrela que dança, em 2010 publicou o livro de contos Pianista boxeador. Foi vencedor do prêmio Valeu Professor 2010, categoria conto. E-mail: danielopes26@yahoo.com.br Daniel Lopes, um cosmos.