O livro de Hugo Houayek, artista visual e mestre em linguagens visuais pela UFRJ, mais do que apenas pensar a pintura no mundo contemporâneo e dialogar com a tradição das artes visuais, traz consigo uma interdisciplinaridade que interessará também àqueles que não necessariamente produzem essas formas de arte, mas que, no nosso caso aqui, pensam e produzem literatura. Ao colocar a questão da pintura como ato de fronteira (título da obra), o autor não se preocupa simplesmente com o seu objeto de análise, contribuindo ao mesmo tempo para o questionamento de outras formas de arte. E o material usado para isso é também a literatura. É ela usada, bem usada, em todo o livro para expor as ideias de seu autor.
“O sarcófago circunscreve a imagem da cama em que o personagem kafkiano Gregor Samsa acorda metamorfoseado depois de sonhar, envolto pela perda de si mesmo, e na cama em que o personagem machadiano Brás Cubas jaz e se lembra da vida que teve. Nesse sentido, a cama comporta-se como um caixão, a última morada do corpo; que, por sua vez, suscita o monstro de mil olhos que não para de nos encarar. No momento em que a finitude se apresenta diante de nós, a campa encara quem a olha e convida o sujeito a entrar (...)
Caída no mundo, a pintura assume a mesma finitude do corpo, passando a ser cadáver. O corpo, que percebemos como um monstro de mil olhos que circunda a arte e nos atravessa por todos os lados, nasce, assim como a pintura, do delinear daquele que parte, que já não está presente. E essa imagem do campo pictórico, circunscrita pelo corpo e sua finitude – a morte –, permeia a produção literária de Edgar Allan Poe, a crítica de Didi-Huberman e a produção artística de Lygia Pape.”
Em outra passagem, diz o autor que “o confronto, sendo conseqüência da guerra, traduz a singularidade da morte iminente. Delineia-se a possibilidade de a pintura adotar o rigor mortis como tática e vestir a roupa de cadáver, ocultar-se em mutáveis esconderijos para enfrentar sua própria morte e poder retornar.”
A leitura de Pintura como ato de fronteira flui e nos enriquece, na medida em que traz à tona o passado para mapear o nosso presente e nos armar para o futuro. Temos assim Poe, Machado, Joyce, Borges e Kafka ao lado de Deleuze, Bloom e Guattari, como também Pollock, Giotto e Lygia Pape, entre outros, para nos ajudar a produzir diferentes e inesperados sentidos, não se limitando apenas a leitores interessados em pensar as artes visuais – essa fronteira é vencida –, mas leitores interessados em pensar a arte em todas as suas formas e manifestações, e em seu confronto com o mundo, a sua queda até se tornar – também – mundo; como escreveu Bloom, o (nosso) “protesto da mente criativa contra a tirania do tempo.”
O livro é parte da coleção ‘Pensamento em arte’ da editora Apicuri, que, através de publicações de textos de artistas e teóricos, busca de forma interdisciplinar e heterogênea trazer aos leitores material para novos debates e reflexões da arte hoje.