27 de fev. de 2011

Uma menina

Por Geraldo Lima


Eis o homem.

Se você, na sua displicência cotidiana, desviar o olhar para a direita, talvez consiga vê-lo passar sobranceiro em meio aos camelôs.

Ao redor, apenas sombras.

Para onde ele vai?, você se indagará na mais completa ignorância acerca do real. A resposta é simples: ele vai sempre para adiante, rumo ao futuro. É um homem metódico: olha ao redor com um olhar demorado, avaliando, aprisionando a alma de tudo; tem objetivos bem definidos e um tato de Midas. E mais: ele não tem tempo para os seres menores. Veja, meu camarada, como ele anda decidido, atropelando quem ousa ficar no seu caminho. O paletó amplia-lhe as espáduas, a arrogância, o poder. Não é um paletó: é uma armadura. O verbo, o substantivo, o adjetivo, tudo é propriedade dele. É um senhor de imensas glebas de linguagem. E isso é quase tudo.

Digo quase tudo porque, o que nele ainda há, é quase impossível revelar. Só por fora é possível vê-lo melhor, contentemo-nos com isso: o homem é uma fortaleza e está muito bem assim.

É meio-dia, e esse é o tempo propício para que as coisas inadiáveis aconteçam. Se assim está escrito, assim será.

Ei-lo que salta do carro, a pasta de couro na mão direita, o olhar diminuindo tudo ao seu redor... Pausa. Tomemos fôlego — oh, nós que só podemos desviar o ombro para lhe dar passagem! Sim, ele mesmo, o homem dos parágrafos acima. Urge nomeá-lo neste parágrafo, talvez assim consigamos chegar mais perto dele, apreender, quem sabe?, um pouco da sua alma. Mas que nome lhe dar? Que nome caberia nessa criatura? Que tal este: Pedro. Por que Pedro?! Porque a sua mãe, culta talvez, enxergando no filho a imagem de Pedro, o Grande, assim o nomeou. O Poder, enfim. Ou (e esta é outra possibilidade, entre tantas), sendo mãe católica apostólica romana, viu exatamente o outro lado, o do apóstolo, da edificação da Igreja. O Bem, em suma. O que vingou nele? no barro de que todos somos feitos? A imagem fria da pedra é que nos salta aos olhos neste instante? Eh, meu camarada, a dúvida campeia livre pelos campos esmaecidos do nosso crânio.

Você que o viu passar apressado dentro do terno cinza, à direita dos seus óculos comprados num camelô do Setor Comercial Sul, deve estar confuso e indagando ao Divino por que cargas d’água ele está entrando naquele restaurante coberto com um toldo imundo. Aquilo é apenas um cubículo. Isso não faz sentido! Por que ele viria a esse lugar?

Vou lhe explicar: eu o pus ali. Perplexo ainda? Eu, com o meu poder de criação, trouxe-o a esta parte suja da cidade. Cometi uma arbitrariedade? uma inverossimilhança? Pode até ser, mas de que outra forma eu o faria entrar num lugar como esse?

E, ao dizer isso, já estou ouvindo o burburinho que brota lá de dentro. Como curiosos, adentramos o recinto.

Ei-lo! Sentemo-nos aqui, meu camarada, neste canto. Desta posição, vamos vê-lo meio de perfil, mas não há outro jeito, as demais mesas estão ocupadas. Vamos prestar atenção aos seus movimentos nos mínimos detalhes. Está certo, sei que você ficará um pouco prejudicado, minha posição é melhor, não resta dúvida, posso enquadrar quase todo o rosto dele, e o ombro daquela mulher vai limitar bastante seu campo de visão, mas, convenhamos, não poderia ser de outro modo, afinal, o demiurgo aqui sou eu.

Num lugar como este tudo pode acontecer. Ele deve ser um cara meio louco, só assim se explica o fato dele estar aqui. Não consegui convencê-lo, meu camarada, com os meus argumentos de literato? Ah, como você é incapaz de transfigurar o real! Está preso a ele, à miséria dele. Que posso fazer para libertá-lo dessa masmorra? Observe: o que aí está, diante de todos, pode ser apenas ilusão. O poder está aqui, ó, na nossa mente. Por que está me olhando assim? Ah, você está me saindo um personagem muito cético, confesso-lhe que estou bastante surpreso. Pois bem: façamos de conta que tudo isso é a mais pura realidade, sem toque algum de fantasia, e não nos cabe explicar o porquê de ele estar aqui nesta espelunca, quando poderia estar no mais chique dos restaurantes. Sendo mais objetivo: em que isso nos afeta diretamente? Em que ponto a vida dele (vida de homem tão poderoso, assim o imagino) cruza-se com a nossa? Algo posso lhe garantir: ele não nos verá, não existimos para ele. A coisa ficou mais absurda ainda? A realidade é de fato absurda, meu camarada, não se espante com isso.

Passemos à refeição.

Veja como ele come rápido, esquecendo-se até da etiqueta. Talvez, sendo um homem prudente, não queira parecer tão requintado num ambiente como este, atrair a atenção de todos sobre sua pessoa ou dar mostras de pedantismo. Mas o mais provável é que esteja preocupado com algum negócio (praticamente não desligou ainda o celular), ou com algum problema em casa, na família... Sim, o nosso protagonista é um homem casado, muito bem casado. E não poderia ser diferente: ele tem planos e planos, e um deles é se engajar na política. O casamento fez dele um homem sério, prático.

E você — sim, você que agora é meu cúmplice nesta viagem perigosa — deve estar me indagando do fundo dos seus botões: Mas como você sabe de tudo isso se antes, creio que no quinto parágrafo, disse que só era possível conhecer esse homem por fora? Estou sem resposta? Embrenhei-me num beco analítico-descritivo sem saída? Bem, digamos que eu, ainda neste momento, exerça algum poder sobre a minha criação. Ninguém pode saber tanto de uma pessoa assim. Nem a própria pessoa em si. Nem Deus.

Começo a desconfiar de que foi pura estupidez minha tê-lo escolhido no meio da massa como companheiro de aventura. Um personagem que coloca em dúvida os métodos ou os procedimentos do seu criador não merece a mínima confiança. E já que você está aí por trás do copo de refrigerante, com esse risinho meio cínico, vou tirá-lo do roteiro, devolvê-lo à realidade (da qual você não consegue mesmo se desgrudar), jogá-lo de novo ao anonimato. E já posso vê-lo sumindo no meio da multidão que, neste momento, procura os restaurantes mais baratos.

Adeus, ó cúmplice meu!

Voltemos ao almoço, que o presente é ágil em urdir passados.

O nosso homem leva o garfo à boca, mas, súbito, congela o movimento e a porção de comida fica pairando quase rente aos lábios: diante dele estão dois olhinhos cinzentos, saltando de um rostinho encardido; este, por sua vez, apresenta-se emoldurado por uma cabeleira que, há dias, não vê pente nem água. Outros detalhes: roupa suja, rasgada, pés descalços, obviamente. O que mais eu poderia colocar nela (nessa nova personagem) para enojá-lo? Causar-lhe arrepios, talvez. Os olhos dele ( ) breve intervalo entre o nojo e a raiva — e talvez eu tenha alcançado o meu intento.

A criaturinha permanece ali, fixa nele, no prato de comida, no pedaço de frango... o rostinho encardido, imundo, um catarrinho descendo de leve numa das narinas. O nojo/a raiva. Quer se erguer, mas não consegue: uma força estranha, maior que a dele, mantém-no preso à cadeira. Como pode continuar a comer depois daquela visão? Mas já não pode controlar os movimentos do corpo, virou uma marionete, e a mão sobe e desce, desce e sobe, indo da boca ao prato, do prato à boca, com nojo e tudo. Estaria delirando? sonhando? É um pesadelo, acordarei em breve.

Viu quando a família chegou, mãe e filhos, todos pequenos e miseráveis — os seres que rastejam, pensou —, pedindo dinheiro aos que ali estavam, e faziam barulho, expondo aos olhos de todos o quadro ínfimo de suas vidas. Parecia uma provocação. Por um instante, ele alimentou a esperança de que não se aproximariam dele.

Mas, agora... o rostinho da menina... aqueles dois olhinhos vazios esticados até o seu prato, querendo a comida ou a sua consciência? a sua alma? o seu remorso? E mesmo que ele abaixe a cabeça e só pense na comida, ou num ponto distante, ainda assim aqueles olhinhos vão continuar ali, piscando. piscando. piscando. E mesmo que ele se erga e saia em disparada, ainda assim esses olhinhos continuarão piscando. piscando cravados nas costas dele. E ainda que ele se refugie no carro, no escritório ou em qualquer outro lugar, e pense intensamente nos filhos, num futuro límpido, distante dali... os olhinhos continuarão piscando dentro dele.

Estou agora junto do homem, saboreando a sua agonia, e posso lhe revelar seco, duro: Não adianta tentar fugir, meu chapa. Um outro qualquer do seu meio conseguiria se livrar facilmente dessa imagem, mas você, não: eu não o trouxe até aqui a troco de nada.

Do livro A noite dos vagalumes, 1998, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária, FCDF.