25 de fev. de 2011

Nacos de Necas & Outras Histórias - 11

Por Claudio Parreira

Depois de uma longa ausência, a série Nacos de Necas & Outras Histórias retoma o seu rumo. Espero que curtam.

1

Obstinadamente construída para abrigar em suas galerias e corredores
todos os livros do mundo, a Grande Biblioteca se ergue como a mais
completa de que se tem notícia. Por suas salas de leitura passam
diariamente sábios filósofos e leigos de toda espécie, gente que vem
pesquisar ou escrever ou simplesmente discutir em línguas remotas
pelo mero prazer da erudição. A estes somam-se ainda turistas
ocasionais, loucos de toda sorte e os facilmente reconhecíveis
apaixonados pela Galáxia de Gutenberg. Todos, sem exceção, são
unânimes em afirmar que a Grande biblioteca é o Magnífico Espelho do
Mundo
. Ignoram, todavia, que a verdade da afirmação se dá pelo seu
contrário: não há alteração no mundo que não tenha sido verificada
antes na biblioteca, lugar onde brotam com a mesma força o progresso
e o caos.

2

Dois homens contemplam a rua do alto de um observatório. Pagaram
para subir e agora esperam por novidades. O primeiro vê apenas um
senhor com um chapéu estranho, uma mulher com um colar de brilho
pálido e um carro antigo que se arrasta. Isso não é novidade, diz ele.
Fui enganado. O segundo homem, por sua vez, vê o mesmo que o
primeiro, mas vai além: no chapéu estranho do senhor encontra o
brasão de uma família tradicional, no pálido colar da mulher reconhece
a nobreza das jóias da Coroa e no interior do carro antigo vê as coxas
sedutoras de uma ninfa.
À saída do observatório os dois homens se despedem. O primeiro
atravessa a rua ainda sem vê-la, e o segundo se detém a cada passo
como se sonhasse.

3

Você descreve a mulher para o seu melhor amigo, e a sua descrição já
não é mais aquela de quem apenas viu, mas outra, de quem se
apaixonou: olhos dum verde oceânico, cabelos dourados de sol, corpo
escultura divina. O seu amigo comenta a descrição, acrescenta e
subtrai, e grava na memória não a imagem de uma mulher, mas uma
metáfora da natureza. O seu poder de descrição, porém, não é
suficiente para expressar nem a mulher nem a metáfora, de maneira
que, ao conversar com um parente sobre o assunto, nele imprime a
idéia de que o objeto do qual se fala não passa de uma caixa de linhas
disformes, com fiapos de tecido flutuando ao vento e pontilhada de
orifícios aqui e ali. Este parente, por fim, que por vício ou virtude
costuma torcer até mesmo os conceitos mais elementares, numa noite
de calor e cerveja se encontra com você, e num tom de confidência
decide se exercitar: à caixa quase abstrata acrescenta contornos
femininos, olhos dum verde oceânico e cabelos dourados de sol, corpo
escultura divina. A tudo isso você ouve com atenção e respeito,
maravilhado pelo fato de haver no mundo duas mulheres tão iguais.

4

Muito, muito quente. Sobre a mesa, o meu velho ventilador, suando
para me refrescar um pouco. Um dia daqueles, posso garantir.
De repente, assim, uma pomba entra no escritório. Olha rapidamente
pra mim e vai em direção ao ventilador. Ficam um diante do outro por
alguns segundos. O silêncio dos dois, percebo, contém uma conversa
importantíssima. E a pomba então se vai, não sem antes olhar pra mim
como se me repreendesse.
Olho para o ventilador e falo:
- Chegou a hora, não é?
Ele faz um sinal afirmativo.
- Então vai - eu digo. - Pode ir.
Agradecido, o ventilador levanta vôo e sai pela janela em direção a
pomba, que já vai longe. Eu observo o seu afastamento por alguns
instantes, mas retorno imediatamente ao trabalho. Essa coisa de
despedidas não é comigo.

5

Ela tem três olhos, mas isso não me incomoda nem um pouco. Pelo
contrário: são três olhos belíssimos, um deles um pouco torto, é
verdade, mas ainda assim. Tem também uma cauda enorme, na qual
tropeço de vez em sempre, mas isso pouco me importa. Às vezes,
quando furiosa por coisas mínimas ou máximas, dependendo da posição
dos astros ou do resultado das loterias, ela costuma me chicotear a
bunda com a ponta espinhuda da caudalheira - mas eu até que curto
isso. E dizer aos outros que ela tem o maior rabo do mundo me enche
de orgulho.
Essa mulher aí, com seus 300 quilos e escamas de navalha, pra mim,
não tem defeito algum. Os maldosos de plantão, que estão por aí feito
piranhas alucinadas, costumam dizer que o seu hálito venenoso e suas
quatro mãos frias configuram, sim, graves defeitos. Eu não ligo. Sei do
seu coração direito, aquele que fica logo abaixo dos outros dois.
Conheço essa mulher desde que a arranquei das páginas de um livro
antigo. Lembro como se fosse hoje: ela tava lá, imóvel e triste figura,
esperando por mim. Quando abri o livro (era uma feira, acho, ou
Bienal, ou ainda no buteco do Zé, que servia cachaça com torresmo &
clássicos literários no balcão), o destino já estava traçado: bati os olhos
nela, ela sorriu pra mim com o primeiro dos seus maxilares. Amor à
primeira vista, caralho, é claro que sim.
Depois desse encontro digno de filme, nos transformamos em alvo de
preconceito de toda espécie: os meus não a aceitaram (não aceitam
até hoje), os dela não me aceitaram (e não mudaram de opinião).
Tentamos, é claro, convencê-los de qualquer forma, argumentar
religiosamente, oferecemos um dinheirinho por fora, et cetera, mas
não teve jeito. Acabamos mandando todo mundo sifudê. Tínhamos um
ao outro e a promessa de um amor eterno enquanto duro pela frente.
Hoje, portanto, estamos aí pro que der e vier. Às vezes ela pisa em
mim com uma de suas 12 patas, mas eu, cristão, ofereço a outra face
(ou a outra costela, dependendo da fratura). É o amor, gente, o amor.
A única coisa que me incomoda um pouco nessa história natural e
edificante é a sensação de que ela não me leva muito a sério. Nunca
falou nada a respeito, é claro, mas tenho cá as minhas dúvidas. É como
se eu desconfiasse de chifres. Uma grande bobagem - afinal, quem tem
chifres é ela, oito, de várias formas e tamanhos.
Mesmo assim, eu tenho cá as minhas convicções. Ela pode até não
acreditar em mim, achar que sou imaginário, mas eu acredito nela do
jeito que ela é ou possa vir a ser. Isso é o suficiente, é o que sustenta e
suporta o nosso amor.