23 de fev. de 2011

e-Oficina para novos escritores: Caindo na real - como esbarrar no que se chama 'a visão da obra'

Por Paula Cajaty

----Escrever não é, de fato, sentar-se à frente de uma folha ou tela em branco, e contar a vida com floreios numa linguagem semi-poética que se arrogue literária. A isso se chama solipsismo, idéia filosófica decorrente do niilismo e são verdadeiros perigos que se põem à boa literatura (a respeito, vide A literatura em perigo, de Tzvetan Todorov, DIFEL, 2009). Diante dessa constatação, nenhum argumento racional resiste, bastando confrontar os escritos de blogs com a literatura clássica e moderna universal.
----Escrever também não é um trabalho que resulte em pagamento de salário ao final do primeiro mês, após terminada a primeira linha escrita. É um trabalho em geral não remunerado ou, na melhor das hipóteses, mal remunerado, à exceção óbvia dos autores dos best-sellers internacionais. Desta forma, o aspirante a escritor já deve ter uma outra alternativa à sua manutenção, antes que se dedique à arqueologia das palavras.
----A primeira coisa que um escritor deve levar em consideração é o tema de seus escritos.
----Há quem defenda que um escritor deve ser capaz de escrever sobre qualquer coisa. Mas isso não é verdade: não existe a possibilidade de alguém no mundo ter domínio completo para escrever "sobre qualquer coisa".
----Para se escrever sobre determinado assunto é necessário conhecimento e pesquisa - muita pesquisa. É preciso um mergulho para dentro - do tema e de si mesmo.
----José Castello, em suas aulas, gosta de dizer que todos temos obsessões. E, no caso do escritor, as obsessões são boas, porque são exatamente elas que o definem, o diferenciam e, por consequência, pautam seu eixo temático e modo de escrita.
----Por sua vez, encontramos em uma entrevista de Luiz Ruffato para o Jornal Rascunho a explicação sobre como ele enveredou pelo caminho do drama operário-urbano e tornou esse o seu assunto preferido e, ainda mais, como desenvolveu a forma própria de escrever sobre isso. Ruffato, nessa entrevista, nos conta que "um dia, quis escrever" e, logo em seguida, se perguntou "mas sobre o que eu quero escrever?"
----Essa pergunta é crucial para todos aqueles que se pretendem escritores: a princípio, sente-se um branco inicial ("eu não sabia sobre o que escrever") mas, depois, com a reflexão serena do que temos à nossa volta, é possível relacionar fatos, particularidades da vida, aquilo que nos distingue e nos torna únicos.
----Claro que não basta pensar: "eu assisto seriados, logo, vou escrever sobre os seriados norteamericanos". Essa pergunta - sobre o quê escrever - deve ser seguida por uma pesquisa interna. Devemos, então, perscrutar o que conhecemos a fundo, sobre o quê nos debruçamos e sobre tudo aquilo que mais nos comove: essa é a obsessão, o assunto sobre o qual poderíamos estudar e discorrer por dias a fio.
----Foi exatamente assim que Ruffato descobriu sua vocação e, logo depois, seu assunto.
----Acontece que não basta o assunto, apenas. É preciso um projeto de trabalho, um work in progress tal como concebido por James Joyce em Finnegans Wake, uma estruturação daquilo que vai ser examinado, tal como se o livro não fosse apenas um livro, mas uma pesquisa disfarçada de romance, livro de contos ou de poemas.
----Tomado esse primeiro passo, então, há que se empreender um estudo profundo de tudo o que já se publicou no Brasil e no mundo sobre o seu tema ou, ao menos, as obras principais. Isso é essencial, na medida em que é necessário entender onde o escritor pretende se inserir e verificar quais as outras obras que dialogam com o seu trabalho.
----No caso de Ruffato, ele conta que levou um susto, pois não havia nada sobre o tema que havia escolhido desenvolvido em livro (de conteúdo estritamente literário) no Brasil. Encontrou, apenas, alguns trabalhos paralelos ou tangentes ao seu tema, como O cortiço de Aluísio de Azevedo, Os corumbás de Armando Fontes e, no fim dos anos 70, o trabalho de Roniwalter Jatobá.
----Identificado o assunto e feita a pesquisa, o trabalho do escritor continua. Conhecedor profundo do tema e ciente do que já existe de importante escrito em seu país e no mundo sobre ele, é necessário estabelecer o formato pelo qual o autor se expressará. Obviamente que a história não precisa ser genial, revolucionária, iniciática, nem conter nenhum adjetivo megalômano - requer-se que, no mínimo, o autor saiba do que está falando, ou escrevendo.
----Há vários formatos e estilos literários disponíveis. Todos eles são usados pelos escritores com razoável desenvoltura. De fato, para cada história existe uma ótima forma de contá-la. Não fosse assim, todos os livros de Oscar Wilde seriam como os de Agatha Christie: uma história que muda, mas no final das contas, é sempre a mesma (e atenção, eu não odeio Agatha Christie por isso!).
----Aqui, um parêntesis. Há escritores que buscam uma redação massificada. E isso, a rigor, não pode ser criticado, até porque a literatura de massas faz muito mais pela cultura geral do que o desenvolvimento de formatos e estilos próprios, muito premiados, mas que pouco vendem. É imprescindível, pois, que o escritor, antes de desenvolver seu trabalho, verifique qual seu objetivo com a literatura, e com a escrita de seus textos.
----Existe, realmente, um formato adequado para cada estilo literário: romance, novela, conto, crônica, poesia, além da mistura entre esses formatos, como é feito com a "prosa poética" ou a "poesia em prosa". Camões, por exemplo, fez uma epopéia em poesia. Mas esse é um assunto que será melhor desenvolvido em outro capítulo.
----Se, finalmente, o escritor optar por uma literatura mais elaborada, deverá também analisar a forma e estilo que serão utilizados no texto.
----Assim, veja-se que Martha Medeiros escreve sobre o cotidiano feminino, em formato de crônicas, Neil Gaiman escreve histórias de terror em formato de contos curtos, Lya Luft escreve sobre os abismos da personalidade, em textos de prosa realista e contos de ficção. Já Veríssimo é o mestre do humor em crônicas e contos curtos, Adriana Lisboa escreve sobre sensibilidades que refogem ao olhar, e José Castello tem preferência sobre textos poéticos fazendo exercícios de aprofundamento frase a frase. Milton Hatoum, por sua vez, se esmera numa literatura regionalizada e grandiloquente, ambientada no Amazonas, e João Gilberto Noll domina uma ficção cíclica, obsessiva e erigida sobre absurdos. Cada escritor com seu tema preferido, com seu estilo próprio, com seu jeito único de contar.
----Agora é hora de escolher o seu assunto, o seu estilo, o seu jeito de contar e montar o projeto do seu texto com tudo aquilo que mais te incendeia, que mais te incomoda, que puxa pelo pé e te acorda para escrever.
----Bom mergulho!

>>> Leia o primeiro texto da e-Oficina, Uma advertência necessária, AQUI
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Paula Cajaty - escritora, formada em Direito e em Publishing Management na FGV. Em parceria com sites, blogs, editoras e agências literárias, produz o Boletim Leituras para mais de 4 mil leitores, prestando serviços de leitura crítica, consultoria em marketing e produção editorial e literária através de seu site www.paulacajaty.com Autora de Afrodite in verso (7Letras, 2008) e Sexo, tempo e poesia (7Letras, 2010).