16 de dez. de 2010

Mitologias

Por Mauro Siqueira

A ingente máquina robótica desceu dos céus bem no meio da Quinta Avenida, próximo ao Central Park. O mundo assistiu à cena com tédio. Repetição. Indiferença. E ninguém acreditou mesmo que aquilo era real. “É mais um filme de Hollywood?”, perguntou uma turista russa com sotaque afetado ao dono da barraca de cachorro-quente, iraquiano emigrado. “Grandes chances de ser… Põe cebola, mostarda?”. “Nem foto vou bater, não vale os meus megabytes e estou com pouco espaço no iPhone…”, retrucou um terno que passava com um amigo de polo. E os mais variados comentários sobre o gigante circularam por toda a cidade… nos sete minutos seguintes. Por dias, o colosso ficou estático, emitindo zunidos, sons de engrenagens, alguns pontos do seu corpo soltavam vapores e fumaça. Mas só. Era como se descansasse. Quase não mais o percebiam: já parte da paisagem; nem mais pássaros ou aviões desavisados colidiam em seu tronco de maciço cobre. Há-de se confessar que as imagens feitas pelos satélites do Doodle® eram interessantes: entre as nuvens e pássaros migratórios, terraços dos edifícios, copas das árvores, erigia-se monumental ser tantálico a tocar os estratos. A sombra criada pela criatura colossal era tão colossal a ponto de criar uma pequena e perpétua célula de noite – como dizem os aedos e os mais velhos nos seus relatos. Muitos começaram a duvidar tratar-se de filme, uma extravagante ação de marketing? Talvez; não seria novidade. O robô voltava a ter algum interesse – mas não muito…

E então, depois de um ano e treze minutos, se mexeu.

O ranger da perna esquerda, outrora dormente, ressoou por entre os prédios estilhaçando janelas ao se levantar para o primeiro passo; os braços em consonância, varrendo fiações, postes em seu caminho, os olhos brilhantes ganharam vida em múltiplas cores escaneando o ambiente: uma sinfonia de horrores… ante os primeiros sinais de vida do robô, não pareceu despertar a população para o fato associável a presença da gigante metálico: aniquilação. Caminhar sobre as pessoas, esmagando-as no seu caminho não parece ter sido o suficiente; junto dos carros diminutos, agora chutados em várias direções; raios laser disparados de suas órbitas argentas e dedos de titânio rasgavam as construções-papel-machê, que se tornaram os arranha-céus da cidade; nova iorquinos do mundo inteiro eram cauterizados a reboque. E não se ouvia um grito. E não se sentia o medo, o pavor. Nem assim a população despertou para aquela invasão, uma tragédia iniciada. “Nossa, como esses efeitos 3-D são reais…”, alguém ainda cria ser um filme, “É, talvez esse eu veja no cinema e não só na internet.”, “Acho que agora algumas fotos podem ser interessantes…”.

Dizem os jornais da época que foi um cachorro ladrando diante da gigantesca criatura que denunciou o talante de seus atos e, assim, deram-se conta da realidade. Como? Não sabemos. As primeiras reações à magnífica destruição ainda não avultava para a desdita de proporções épicas que viria dar cabo de todos. Apenas que, após o fato (e o sacrifício canino), as autoridades moveram-se e sobre a cidade: tanques, navios, aviões e toda sorte de força coercitiva foi enviada para conter os avanços do terrível maquinário.

Nova Iorque sucumbiu em três dias. Algo maior deveria ser feito.

Países inimigos tornaram-se amigos, povos com rivalidades históricas passaram por cima das embaçadas razões e juntaram forças contra o mal comum. Vigílias com todas as religiões, crenças e deidades iniciaram-se por todos os lugares e rincões do planeta, esforços de toda sorte por todas as partes: as pessoas não abandonavam a esperança. Vancouver, Montreal, Chicago, Los Angeles, Cidade do México, Havana: caíram em cinco dias.
Por unanimidade, na primeira reunião das nações em Teguciglapa, a escravidão foi reimplantada mundialmente e todos aplaudiram de pé – as fábricas não podiam interromper a produção de armas contra o grande robô; mulheres eram pagas para engravidar e darem à luz em cinco meses – havia filas para inseminação – senhoras de 60, 70 e até 90 anos sendo novamente mães, mães que nunca veriam os filhos, filhos feitos para a guerra, que em quatro meses após a bélica concepção, graças à engenharia genética, estariam com a idade de 15 anos e aptos para lutar – e só.
Caracas, Bogotá, Quito, Santiago caíram em um dia.
Buenos Aires em quinze minutos.

A Guerra Una, como ficou conhecida o conflito contra o robô (e que nunca se buscou saber as origens e motivações do colosso), só cessaria com o último homem capaz de empunhar um rifle ou uma pedra. Não foi necessário, em apenas 85 anos, nós vencemos. Após doze anos de cerco no Canal da Mancha, o robô desabou sobre o solo francês – demorou duas horas inteiras para cair por completo. Na queda obliterou a Bélgica, Luxemburgo e partes da própria França e Alemanha. O planeta comemorou por três anos inteiros e a certa altura alguém perguntou: “O que diabos estamos comemorando?”, como mais ninguém se lembrava ao certo, todos foram para casa. A primeira criança nascida após a Guerra Una não vingou; nem a segunda, ou a terceira ou a décima quinta… somente a septingentésima nona – uma menina chinesa – sobreviveu, os pais chamaram-lhe, então, “Segunda” em homenagem a primeira tentativa do casal.

Dos despojos do robô (o qual nunca se buscou saber as origens e motivações do colosso), começaram a serem disputados pelos governos remanescentes do planeta, todos queriam descobrir seu funcionamento, possíveis usos e segredos, jogando o mundo em mais 20 anos de batalhas e escaramuças. O levante das megapotências lideradas pela aliança Botswana-Zaire venceram o Brasil no embate pela hegemonia mundial. Ao cabo de poucas análises do magnífico maquinário, descobriu-se que não havia nada de espetacular em sua criação – na verdade nem derrotado fora, mas sim ficara sem energia – algumas milhares de placas solares e pilhas alcalinas tamanho AAA – daquela mesma marca do coelhinho – e que na queda, partiu-se em várias partes, e mais: fora construído numa fábrica suja na antiga Indonésia a mando do governo japonês e se o Japão ainda existisse seria destruído pelo acinte contra o mundo.

Hoje, aquelas mesmas partes disputadas pelas diversas nações, ornam parques e jardins pelo mundo afora, sem qualquer sinal da ameaça que representaram. E pouco se fala sobre esses tempos, àqueles que esquecerem a Una Guerra, recorrem a expedientes mais convencionais como velhos livros, periódicos, arquivos, fotos no Facebook e filmes de baixo orçamento feitos, na boca do lixo paulistana, com aquele efeito tão vintage de 3-D, para recomporem essa história quase esquecida e de pouco interesse comercial.

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Publicado originalmente em www.blooks.com.br