ATO 1
Sentado ali no balcão, diante do café e do bolinho Ana Maria ele voava em seus pensamentos:
“Todos os dias são como os anteriores: entro, peço o café e, antes que esfrie, engulo-o rápido; na saída encontro o mesmo guarda barrigudo e armado com o .38 velho e enferrujado no coldre, sigo pro banco do outro lado da rua e nem sequer olho para os clientes que atendo, que, um a um, como vacas sagradas hindus, vêm de uma fila que nunca acaba. Ainda, sou perseguido pelo gerente; a loira dos meus sonhos do guichê ao lado me trata como uma das samambaias que enfeitam o banco e nem sabe que existo.”
Nem ao menos havia tocado o café. Já estava ali parado há uns cinco minutos. Vestido como um típico bancário – camisa branca, gravata, cabelos alinhados, o perfeito engomadinho – resignado em sua condição.
Estava pronto para uma revolução.
Estava pronto para despertar.
Levou a xícara à boca, parou no meio do caminho. Nos décimos de segundo decorridos entre o balcão e ato de beber, uma ideia desconcertante queimou seu cérebro.
“Por que não me levanto, tomo a arma daquele guarda, mato meu gerente e arrasto aquela garota pelos cabelos e a levo comigo?”
Ele observa com atenção a xícara de café em suas mãos, olha ao redor. Toda aquela perfeição cotidiana o incomoda. Tão perfeita quanto a xícara. Ele estava pronto para uma revolução.“Por que não?”, indaga-se. Estava pronto para despertar.
Num gesto rápido ele levanta e arremessa todas suas frustrações junto com a xícara que, em milhões de pedaços espatifa-se contra a parede de azulejos brancos impecáveis, tão brancos quanto a xícara, tão brancos como sua camisa. Tão brancos como sua vida...
O café que ele bebia todos os dias escorria, agora, numa enorme mancha pela parede... como sangue.
ATO 2
“Vai ser só uma festa”, disseram. No dia seguinte, segunda-feira teria de estar às oito horas no banco. “Será só um encontro de amigos, coisa pequena”, insistiam. Três e meia da manhã e eu ainda não tinha voltado pra casa. Jack Daniels, José Cuervo, ecstasy, especial K e Drum ‘n’ bass foram alguns dos convidados da festinha. No dia seguinte, no balcão da lanchonete onde sempre tomo o café, ainda mastigado, ainda entorpecido, fui incomodado pelo atendente que sempre me via arrumado e bem vestido; perguntando:
“O que é que você tem hoje?”
“Ontem, dormi tarde”, respondi, muito depois, quando voltou com meu café.
ATO 3
A ressaca ferrava com a mente dele, talvez a sensação de repetição. Todos os gestos daquele dia pareciam tão iguais aos outros feitos por ele que... “Dejà vu”, pensou, lembrou-se de Matrix, mas também se lembrou de viver numa eterna rotina, como uma máquina a dar voltas numa pista redonda, um hamster na roda da gaiola – sempre em movimento e sempre estagnado; ou um daqueles macacos que foram ao espaço: “push the button”, “pull the switch”, “turn the key”. Uma peça branca de um quebra-cabeças também branco... como sua xícara. Olhou para o relógio na parede: o ponteiro parecia retroceder. Olhou para o seu: parecia parado. “Foda-se!”, pensou em voz alta mais uma vez. “Bom dia!”, disse o guarda barrigudo ao passar por ele. Seus ouvidos doeram ao ouvi-lo. Sentia-se desconfortável naquela manhã, sentia-se diferente, deslocado, por que não dizer outro. Uma inquietação pertinente crescia dentro dele, tomava conta dele, um grito primal que do âmago mais escondido, surge pouco a pouco reivindicando LIBERDADE.
A seu ver tudo parecia fora do lugar, pequenos detalhes que mal ele mesmo sabia. “Sonho?”, uma possibilidade. “Realidade?”, outra possibilidade.
Ideias estranhas passavam por sua cabeça, dominavam-no... guardas, loiras, armas, gerentes... muita merda numa cabeça cheia dela. Ele estava pronto para uma revolução. Estava pronto para o despertar.
Já ia bebendo o café quando pensou:
“Por que não?”
***
Aproveitando a recente entrevista resolvi postar um conto significativo para mim, este, que foi o primeiro que decidi selecionar para o meu livro.