19 de fev. de 2010

Esporo

Por Ana Paula Maia

Para Simone Campos

Rosália olhava para o forno fazia cinco minutos. Costumava deixar o alicate de unha por dez minutos dentro do forno para esterilizá-lo a alta temperatura. Trabalhava como manicure fazia quinze anos. Foi cutilando e pintando unhas que pagou seu primeiro grau incompleto, o aborto do filho do Tonho e comprou o material de construção para a obra de sua casa de quatro cômodos. Pintou o interior de amarelo claro e parcelou a mobília nova em 72 prestações. Durante os cinco minutos ali parada, pensava em quantos alicates teve nos seus quinze anos de profissão. Não sabia contar muito bem.
O forno apitou e da recepção gritaram seu nome. A cliente das quatro da tarde havia chegado. A cliente das quatro da tarde era uma mulher gorda e peluda. Para fazer as unhas do pé precisava se inclinar na cadeira ao colocar os pés no colo de Rosália. Em seu colo, também haviam passado muitos pés. Nenhum filho. O único abortado a deixou sequelada. Era tão estéril quanto os seus alicates. Essa coisa de esterilizar tudo é que havia acabado com ela.
Viu a cliente. Suspirou sentindo-se cansada. Havia café fresco na garrafa térmica sobre uma bancada. Ela apanhou um copinho descartável e despejou o café. Saía fumaça. Ela bebeu sem pressa, apoiada na bancada. Refletiu por algum tempo. O que Rosália refletiu e ponderou nunca poderemos saber, pois os pensamentos são silenciosos. Nem mesmo para um narrador onisciente é possível conhecer todos os segredos de seus personagens. Eles, entre pensamentos silenciosos, retornam de seus estreitos abismos e podem surpreender até o seu narrador.
Rosália apanhou na bolsa um alicate velho, cego e doente.
A mulher deixou os pés de molho e ela começou a cutilar as unhas das mãos. Rosália queria ver um pouco de sangue. Sabia que a mulher não iria gostar, mas arrancou o primeiro bife. O sangue escorreu rápido.

– Está bem encravada, né?

A mulher confiava em Rosália. Sabia que seus alicates eram sempre esterilizados. Depois do primeiro sangramento, não parou mais. Retalhou cuidadosamente os dedos da mulher.

– Rosália, dona Esmeralda precisou tomar antiinflamatórios. O que deu em você? A mulher quase foi internada.

Rosália baixou a cabeça e não disse nada.

– Você tem alguma explicação pra isso? – insistiu a dona do salão.

Rosália deu de ombros e saiu da presença da mulher mascando um chiclete.

Foi despedida e logo contratada em outro salão. E sempre que podia cortava mais fundo a cutícula. Tornou-se tão habilidosa que suas pequenas investidas não eram nem sentidas. Usava um anti-coagulante em forma de bastão e a satisfação aumentava.

Descobriu que uma de suas clientes havia sido contaminada com o vírus HCV.

– Hepatite C, Rosália, é isso que esse vírus dá.

Rosália fazia as unhas dessa cliente duas vezes por semana. Sempre a sangrava de leve e depois usava o alicate em outras. Não conhecia bem a doença, mas sabia que era crônica. A palavra crônica lhe parecia muito séria e importante. Tempo depois, a cliente morreu de câncer no fígado. Cansaço, náusea e dores no corpo passou a fazer parte da rotina de suas clientes. Todas estavam adoecendo, porém a causa, dizia Rosália, era estresse.

– É estresse, dona Conceição. Tá todo mundo muito estressado hoje em dia.
– Tão dizendo que tem um andaço de hepatite C por aí. A gente só pode fazer as unhas com quem é de confiança... assim como você Rosália.

Ela não respondeu. Mas deu de leve uma beliscada na velha que retraiu a mão. Rosália se desculpou.

Pediu demissão dias depois e conseguiu trabalho em mais dois salões a vinte quilômetros dali. Depois da confiança depositada nela, começava a beliscar suas clientes. Cansaço, náusea e dores no corpo. Estava na hora de mudar novamente.

Meses depois de circular em tantos salões e contaminar tantas clientes, às vésperas do natal, recebeu um buquê de rosas cheio de espinhos. Levou muitas espetadas nas mãos quando colocava as rosas num vaso de louça. Rosália nunca havia recebido um buquê de rosas em sua vida. As rosas murcharam e as mãos de Rosália inflamaram, pois os espinhos entranharam em suas carnes até apodrecê-las. Podres, foram amputadas. Quando chegou a primavera nasceram espinhos nas suas mãos. Nunca soube quem lhe enviou as rosas. Nunca mais pôde tocar em nada sem ferir ou fazer sangrar.

Ana Paula Maia, nascida no Rio de Janeiro, é autora dos romances O habitante das falhas subterrâneas (7 letras, 2003) e A guerra dos bastardos (Língua geral, 2007). Em 2006 publicou o primeiro folhetim pulp da Internet brasileira, Entre Rinhas de cachorros e porcos abatidos, transformado recentemente em livro (Record, 2009). Atualmente divide-se entre a republicação do seu primeiro romance em folhetim no site http://www.cronopios.com.br/, a publicação de crônicas em http://www.vidabreve.com/ e os últimos retoques em Carvão Animal, seu romance que conclui a Saga dos Brutos, iniciada com as novelas que compõe o Rinhas. Tem contos publicados em diversos sites, revistas e antologias, entre elas 25 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Record, 2004), organizada por Luiz Ruffato e Sex´n´Bossa (Mondadori, Itália, 2005). Bloga em http://killing-travis.blogspot.com/
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