20 de fev. de 2010

'Mulheres' - parte 02

ESSA MULHER QUE EU NÃO SEI QUEM

Por Claudio Parreira

RÁPIDO ASSIM: eu vi a mulher, ela se percebeu sendo vista, entrou no espelho e desapareceu.

Apaguei o cigarro antigo com as botas mais antigas ainda e fui atrás. O espelho permitiu a minha entrada sem perguntas. Os espelhos, afinal, nunca perguntam.

Chovia peixes quando botei os pés pela primeira vez naquela terra escura. Uma única luzinha acesa lá longe. Uma casa, talvez um olho. E nada da mulher.

Essa coisa dos peixes caindo do céu não é milagre porra nenhuma: dói pra cacete. E incomoda. A muito custo avancei alguns metros, sempre tirando os peixes do caminho, protegendo a cabeça dos peixes maiores, as botas esmagando os peixinhos. Mas a mulher, encontrá-la, é claro que sim. Com peixes e tudo.

A grande boca escura do céu soprando espinhos no meu rosto. Soubesse das dificuldades, teria ficado na minha. Ou não, porque o que interessa mesmo é a aventura, e uma mulher que se deixa escapar por um espelho não é sempre que.

A terra molhada de peixes, a luz brilhando ao longe. Os meus passos. O coração saltando aos solavancos. O nome disso é dor. E sem essa de pensar que a dor nos torna mais fortes. Isso é conversa de almanaque. A dor nos torna mais doloridos.

Avanço, portanto, de dor em dor, a alma dolorida. Ao desaparecer pelo espelho a mulher deixou uma mensagem bem clara atrás de si: não me acompanhe. Mas eu não tenho mais nada a perder, já perdi. De tal maneira que li o não me acompanhe com as letras do vem meu amor. Eu, que apesar de tudo ainda procuro o amor.

E é esse amor-peixe que me golpeia a cabeça, que me encharca a roupa de escuridão, o amor é essa luz que sei ao longe mas nunca alcanço.

Um caminho é feito de todos os outros caminhos: esquerda direita em frente tanto faz. O caminho é aquilo que se apanha pelo caminho: uma rosa, um sentimento, um monstro.

Porque assim, enfim livre de uma vez por todas dos peixes e das dúvidas, fui em frente, o açoite dos espinhos cedendo lugar ao afago de mãos invisíveis. A mulher, sim, estava lá em algum lugar. Cheia de poesia e facas, a boca pronta para o beijo ou mordida. A mim só restava conferir. Fixar a cara do amor diante da minha, respirar o seu bafo, provar a sua cor. Porque ainda acredito, talvez minha única crença, essa, no amor. Agarrar o amor pelos ombros sacudi-lo até enchê-lo de pavor de mim; abrir os seus olhos para mim. Sim, eu existo! — gritaria para o amor, que tem me ignorado desde sempre.

E de repente o amor nada mais é que essa mulher que eu não sei quem, que entra pelos espelhos como quem respira, que flutua entre a chuva de peixes.

Uma mulher que me escapa. Subitamente percebo que encontrá-la, alcançá-la, seria a chave de todos os mistérios, a resposta das respostas. E também o fim, porque sem mais nada a esclarecer, pra quê?

Parado no meio do caminho, a luz ao longe, um olho?, os peixes voltam a cair do céu com redobrada dedicação. Voltar pelo mesmo espelho não é uma alternativa, é covardia; permanecer aqui sob a chuva de cardumes inteiros é burrice. O quê, então? As dúvidas do amor, sempre.