Por Gustavo Coelho
Francisco era um homem pacato que, apesar de seus quilinhos extras, tentava manter a forma, sem engordar muito. Subia escadas ao invés de usar elevadores, dispensava refrigerantes durante a semana e colocava um tênis surrado nas manhãs de sábado para caminhar no parque a algumas quadras de casa. Mas nada disso parecia surtir muito efeito. Seu peso oscilava pouco, e a barriga, mesmo que não crescesse, também não regredia.
O curioso é que, para além da balança, Francisco parecia
viver numa espécie de redoma de infortúnios. A maioria das coisas que desejava,
por mais simples que fossem, acabava em decepção. Não era dramático nem
vitimista — era apenas um padrão que, com o tempo, ele passou a encarar com uma
resignação silenciosa. Seja quando ele encomendava algo online e os itens
chegavam trocados, quebrados ou em tamanhos incompatíveis, ou quando ele ia ao
banco tentar resolver um assunto simples, o sistema caía bem na sua vez e o
fazia esperar por horas. Era como se houvesse uma pequena força sutil no
universo que se deliciava com seus fracassos cotidianos.
Em uma manhã de terça-feira, ele se levantou disposto a
começar com o “pé direito” e ter seu primeiro caso de sucesso na vida. No dia
anterior seu chefe havia convocado seus melhores engenheiros para trabalhar na
apresentação mais importante da empresa. Ali mesmo ele havia prometido a
gerência do projeto para aquele que melhor se destacasse. Visando isto, durante
a semana, até a noite anterior à apresentação, Francisco estudou com afinco,
revisando o projeto elaborado pela firma. Era voltado para a construção de um
grande shopping e seria apresentado para um novo cliente da empresa de
engenharia na qual ele trabalhava. Como o projeto não era dele, buscou estar
afiado, principalmente por ter detectado falhas estruturais sérias que poderiam
comprometer a futura construção.
Então chegou o dia. Hoje era o prazo para a entrega junto ao
cliente. Francisco, se dirigindo à sala de reuniões, não parava de pensar na
promessa de seu chefe. Não era só a gerência do projeto que ele almejava.
Queria, também, aproveitar a constante procura do sr. Osmar em achar alguém
para coordenar equipes a partir do próximo trimestre.
A sala de reuniões estava iluminada pelos painéis de LED. As
paredes de vidro deixavam passar o burburinho dos outros setores, abafado como
um zumbido distante. Francisco ajeitou os óculos no rosto, se sentando e mantendo
a postura ereta diante da mesa longa de madeira escura. Ao centro, estavam
dispostas as pranchas do projeto. Osmar, o chefe de engenharia e coordenador da
equipe, após a chegada de todos, começou a reunião. Conduzia a explanação com o
tom firme de quem dominava o assunto. O cliente, um homem calvo e reservado que
estava sentado junto de seu assistente e advogado, permanecia atento, sem
demonstrar muito entusiasmo. Francisco escutava em silêncio, mas dentro de si
havia um incômodo crescente. Esperou o momento certo e, sentindo o coração acelerado,
levantou a mão, interrompendo as declarações positivas acerca do projeto que o
sr. Osmar apresentava.
— Desculpe interromper — disse ele, com voz firme. — Antes
de prosseguirmos com a aprovação, gostaria de fazer uma observação técnica
sobre o projeto.
O silêncio tomou conta do ambiente. Todos se viraram em sua
direção.
— Revisei detalhadamente as pranchas nos últimos dias. E,
com o devido respeito ao autor do projeto, preciso dizer que encontrei falhas
relevantes — ele apontou com seu lápis. — Aqui, por exemplo: há colunas
superdimensionadas em relação à carga real; nesta seção, a distribuição do peso
entre os blocos estruturais está desalinhada; e, mais adiante, uma laje cuja
espessura não corresponde à carga especificada. A longo prazo, isso
comprometeria a segurança do shopping.
Virou-se para o cliente.
— Acredito que, para o bem do empreendimento, essas questões
devem ser revisadas antes da aprovação.
O cliente consultou seu advogado discretamente, limpou os
óculos com um lenço e os recolocou.
O sr. Osmar, o rosto parado e sem alterar o tom de voz, disse:
— Obrigado pelo apontamento, Francisco — com um sorriso
fechado. — De fato, revisões são sempre bem-vindas. Especialmente neste
estágio.
O cliente pigarreou e disse:
— Agradeço a sinceridade e a atenção de todos — com o
semblante pesado, mas polido. — Realmente não podemos permitir que o atual
engenheiro projetista siga com esse projeto. Foi um alerta valioso. Mais uma
vez, obrigado.
Dirigiu-se à porta, cumprimentando com acenos tímidos os
presentes. Osmar, que permanecia imóvel em sua cadeira, acompanhou a saída do
cliente. Assim que a porta se fechou, o ambiente permaneceu por alguns segundos
mergulhado em silêncio. O chefe então se levantou lentamente e olhou para
Francisco com um misto de incredulidade e raiva contida, os olhos frios e a
mandíbula rígida.
— Fábio — disse ele, chamando um dos coordenadores da empresa
que estava ao lado de Francisco —, na minha sala. Agora.
Sem esperar resposta, se virou e saiu da sala.
O ambiente, antes concentrado, agora se enchia de cochichos.
Olhares se cruzavam. Cabeças se inclinavam umas para as outras. Francisco ainda
estava sentado, imóvel, tentando entender o que havia acontecido. Sentia-se
desconfortável, mas não arrependido.
— Cara... você tá maluco? — murmurou Marcos, seu parceiro de
baia, que estava logo ao lado. — Você leu esse projeto mesmo?
— Li, claro. Passei a semana inteira analisando. Decorei
cada detalhe estrutural. Só não entendi a reação do Osmar...
Marcos soltou uma risada sem humor e se inclinou para a frente,
empurrando uma das folhas do projeto na direção de Francisco.
— Olha aqui, na capa. Dá uma lida com calma.
Francisco pegou a folha e observou. No canto inferior
direito, em letras destacadas no carimbo técnico, lia-se:
Eng. Civil Osmar Guimarães –
Responsável Técnico pelo Projeto
O sangue pareceu escoar de seu corpo todo, deixando apenas
um frio no estômago e um calor no rosto. As palavras começaram a embaralhar-se
em sua mente. “Revisar antes da reunião... Apontar os erros... Mostrar
capacidade...” Tudo fazia sentido até ali. Mas havia pulado um detalhe
essencial... A legenda principal carimbada.
Aquele não era um esboço interno, tampouco uma sessão de brainstorm
técnico. Era a reunião de aprovação final. O cliente estava ali para dar o
"sim" definitivo. E ele — Francisco — acabara de enterrar a
negociação na frente de todos.
— Mas que diabos deu para o Osmar ter feito este projeto?
Ele nunca faz porra nenhuma!
Marcos se inclinou e, em tom baixo, respondeu:
— Foi ordem lá de cima. Eles não queriam que nada saísse errado, então pediram que ele mesmo fizesse o projeto.
“Fudeu!”
* Continua amanhã, dia 08/12.
Gustavo
Coelho,
natural do Rio de Janeiro (RJ), reside em Uberlândia/MG. Formado em Comunicação
Social e especialista em Marketing, assim como todo bom nerd, é um apaixonado
pela cultura Geek. Empresário com 45 anos, tem como hobby a contínua busca do
anime perfeito. Casado, pai de uma linda filhota, entra neste mundo mágico da
Literatura buscando expandir, cada vez mais, sua criatividade e imaginação.
