7 de dez. de 2025

F.O.D.A. – SE (parte 1)

Por Gustavo Coelho

Francisco era um homem pacato que, apesar de seus quilinhos extras, tentava manter a forma, sem engordar muito. Subia escadas ao invés de usar elevadores, dispensava refrigerantes durante a semana e colocava um tênis surrado nas manhãs de sábado para caminhar no parque a algumas quadras de casa. Mas nada disso parecia surtir muito efeito. Seu peso oscilava pouco, e a barriga, mesmo que não crescesse, também não regredia.

O curioso é que, para além da balança, Francisco parecia viver numa espécie de redoma de infortúnios. A maioria das coisas que desejava, por mais simples que fossem, acabava em decepção. Não era dramático nem vitimista — era apenas um padrão que, com o tempo, ele passou a encarar com uma resignação silenciosa. Seja quando ele encomendava algo online e os itens chegavam trocados, quebrados ou em tamanhos incompatíveis, ou quando ele ia ao banco tentar resolver um assunto simples, o sistema caía bem na sua vez e o fazia esperar por horas. Era como se houvesse uma pequena força sutil no universo que se deliciava com seus fracassos cotidianos.

Em uma manhã de terça-feira, ele se levantou disposto a começar com o “pé direito” e ter seu primeiro caso de sucesso na vida. No dia anterior seu chefe havia convocado seus melhores engenheiros para trabalhar na apresentação mais importante da empresa. Ali mesmo ele havia prometido a gerência do projeto para aquele que melhor se destacasse. Visando isto, durante a semana, até a noite anterior à apresentação, Francisco estudou com afinco, revisando o projeto elaborado pela firma. Era voltado para a construção de um grande shopping e seria apresentado para um novo cliente da empresa de engenharia na qual ele trabalhava. Como o projeto não era dele, buscou estar afiado, principalmente por ter detectado falhas estruturais sérias que poderiam comprometer a futura construção.

Então chegou o dia. Hoje era o prazo para a entrega junto ao cliente. Francisco, se dirigindo à sala de reuniões, não parava de pensar na promessa de seu chefe. Não era só a gerência do projeto que ele almejava. Queria, também, aproveitar a constante procura do sr. Osmar em achar alguém para coordenar equipes a partir do próximo trimestre.

A sala de reuniões estava iluminada pelos painéis de LED. As paredes de vidro deixavam passar o burburinho dos outros setores, abafado como um zumbido distante. Francisco ajeitou os óculos no rosto, se sentando e mantendo a postura ereta diante da mesa longa de madeira escura. Ao centro, estavam dispostas as pranchas do projeto. Osmar, o chefe de engenharia e coordenador da equipe, após a chegada de todos, começou a reunião. Conduzia a explanação com o tom firme de quem dominava o assunto. O cliente, um homem calvo e reservado que estava sentado junto de seu assistente e advogado, permanecia atento, sem demonstrar muito entusiasmo. Francisco escutava em silêncio, mas dentro de si havia um incômodo crescente. Esperou o momento certo e, sentindo o coração acelerado, levantou a mão, interrompendo as declarações positivas acerca do projeto que o sr. Osmar apresentava.

— Desculpe interromper — disse ele, com voz firme. — Antes de prosseguirmos com a aprovação, gostaria de fazer uma observação técnica sobre o projeto.

O silêncio tomou conta do ambiente. Todos se viraram em sua direção.

— Revisei detalhadamente as pranchas nos últimos dias. E, com o devido respeito ao autor do projeto, preciso dizer que encontrei falhas relevantes — ele apontou com seu lápis. — Aqui, por exemplo: há colunas superdimensionadas em relação à carga real; nesta seção, a distribuição do peso entre os blocos estruturais está desalinhada; e, mais adiante, uma laje cuja espessura não corresponde à carga especificada. A longo prazo, isso comprometeria a segurança do shopping.

Virou-se para o cliente.

— Acredito que, para o bem do empreendimento, essas questões devem ser revisadas antes da aprovação.

O cliente consultou seu advogado discretamente, limpou os óculos com um lenço e os recolocou.

O sr. Osmar, o rosto parado e sem alterar o tom de voz, disse:

— Obrigado pelo apontamento, Francisco — com um sorriso fechado. — De fato, revisões são sempre bem-vindas. Especialmente neste estágio.

O cliente pigarreou e disse:

— Agradeço a sinceridade e a atenção de todos — com o semblante pesado, mas polido. — Realmente não podemos permitir que o atual engenheiro projetista siga com esse projeto. Foi um alerta valioso. Mais uma vez, obrigado.

Dirigiu-se à porta, cumprimentando com acenos tímidos os presentes. Osmar, que permanecia imóvel em sua cadeira, acompanhou a saída do cliente. Assim que a porta se fechou, o ambiente permaneceu por alguns segundos mergulhado em silêncio. O chefe então se levantou lentamente e olhou para Francisco com um misto de incredulidade e raiva contida, os olhos frios e a mandíbula rígida.

— Fábio — disse ele, chamando um dos coordenadores da empresa que estava ao lado de Francisco —, na minha sala. Agora.

Sem esperar resposta, se virou e saiu da sala.

O ambiente, antes concentrado, agora se enchia de cochichos. Olhares se cruzavam. Cabeças se inclinavam umas para as outras. Francisco ainda estava sentado, imóvel, tentando entender o que havia acontecido. Sentia-se desconfortável, mas não arrependido.

— Cara... você tá maluco? — murmurou Marcos, seu parceiro de baia, que estava logo ao lado. — Você leu esse projeto mesmo?

— Li, claro. Passei a semana inteira analisando. Decorei cada detalhe estrutural. Só não entendi a reação do Osmar...

Marcos soltou uma risada sem humor e se inclinou para a frente, empurrando uma das folhas do projeto na direção de Francisco.

— Olha aqui, na capa. Dá uma lida com calma.

Francisco pegou a folha e observou. No canto inferior direito, em letras destacadas no carimbo técnico, lia-se:

 

Eng. Civil Osmar Guimarães – Responsável Técnico pelo Projeto

 

O sangue pareceu escoar de seu corpo todo, deixando apenas um frio no estômago e um calor no rosto. As palavras começaram a embaralhar-se em sua mente. “Revisar antes da reunião... Apontar os erros... Mostrar capacidade...” Tudo fazia sentido até ali. Mas havia pulado um detalhe essencial... A legenda principal carimbada.

Aquele não era um esboço interno, tampouco uma sessão de brainstorm técnico. Era a reunião de aprovação final. O cliente estava ali para dar o "sim" definitivo. E ele — Francisco — acabara de enterrar a negociação na frente de todos.

— Mas que diabos deu para o Osmar ter feito este projeto? Ele nunca faz porra nenhuma!

Marcos se inclinou e, em tom baixo, respondeu:

— Foi ordem lá de cima. Eles não queriam que nada saísse errado, então pediram que ele mesmo fizesse o projeto.

“Fudeu!”


* Continua amanhã, dia 08/12.


Gustavo Coelho, natural do Rio de Janeiro (RJ), reside em Uberlândia/MG. Formado em Comunicação Social e especialista em Marketing, assim como todo bom nerd, é um apaixonado pela cultura Geek. Empresário com 45 anos, tem como hobby a contínua busca do anime perfeito. Casado, pai de uma linda filhota, entra neste mundo mágico da Literatura buscando expandir, cada vez mais, sua criatividade e imaginação.