“A bala que matou o filho o matou dois meses depois”
Por Ricardo Novais
Presente senhor leitor, permita-me que assim o trate, com a solenidade de quem anuncia um velório. É possível que pense que a sua vida regrada o salve da lascívia do escândalo público. Mas engana-te! Talvez a dona leitora, mais asseada que o senhor leitor, imagine que a lúbrica tragédia mora longe, nas páginas da literatura ou dos boletins policiais. Engana-te igualmente! A desgraça da integridade desonrada mora logo ali, na casa de número vago, onde até as cortinas têm vergonha de se abrir.
O pai, funcionário de carreira corporativa, homem de relógio e alarme, sempre foi um exemplo de cidadão de bem. Dizia que o pior escândalo é sempre o dos outros; o seu, não permitia nem debaixo do travesseiro. O filho, contudo, nasceu com vocação para o pecado: bonito, boêmio, confiado e, digamos, largo demais com as mulheres alheias. Tinha o dom da “talaricagem” no sangue como um possante pé-de-pano.
Eis que um dia, entre o barulho do metrô e o cheiro de café expresso em copo americano, o rapaz cai na calçada defronte à estação. Um tiro. Só um, senhor leitor. Um tipo certeiro, higiênico, quase digno. O marido traído tinha boa mira e, como todo corno, pouca paciência. Diria que a resignação de um corno é concentrada, concentradíssima.
Morrera o filho. O pai, ao saber, não gritou. Fechou a porta, sentou-se e suspirou com dignidade. Chorou baixo, como choram os homens que têm temor da opinião pública. Limitou-se a dizer: “Meu filho era bom”. Mentia. Mas mentia com afeto. A leitora há de concordar que isso o redimia um pouco.
No velório, as distintas senhoras do bairro rezavam e cochichavam entre um Pai-Nosso e outro: “Foi o que deu mexer com mulher casada. O marido só lavou a honra”. Desgraçadamente, as fofoqueiras tinham razão – sempre têm, essas santas de esquina.
Algum tempo de calendário depois, o pai enlutado começou a visitar o túmulo do filho talarico todos os dias. Falava com a catacumba como quem implora por perdão. “Meu filho, a culpa é minha. Não soube te dar boas maneiras, educação...”. Comovente; não é mesmo, amiga leitora?
O tempo, esse burocrata e psicopata, deixou passar dois meses e três dias; já as horas exatas, imperfeitas demais para acertar os ponteiros. Mas o pai, sim, acertou-se com seus ponteiros; cada dia mais anêmico, deixou de ir ao escritório, não compartilhava mais vídeos do Brasil Paralelo no grupo do WhatsApp da família e dos amigos, sequer fazia mais a barba e as lentes dos óculos foram ficando sebosas e embaçadas.
Encontraram-no morto na poltrona de sua sala de estar. Café frio ao lado. O corpo quieto, o olhar parado em cima do celular. Na tela do aparelho, ainda aberta, via-se a foto do perfil de rede social da mulher do corno assassino. Finalmente, teve compaixão por si mesmo compreendendo o seu castigo naquele calibre do destino.
Pai e filho não morreram de amor. Morreram de moralidade, como legítimos
cidadãos de bem.
Ricardo Novais nasceu em São Paulo. Costuma dizer que só escreve
porque escrever é coisa infinita, ainda que seja somente rótulo. Rótulos podem
ser divertidos, superficiais, é verdade, mas bem divertidos. É autor do romance
O Boêmio e dos livros de contos Trem noturno e Perfumes da
pátria. Acredita que a vida e a morte são como um gol aos 45’ do segundo
tempo; o último gole é sempre a saideira.
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