21 de nov. de 2025

Instantâneos poéticos nos minicontos de José Eduardo Degrazia

Por Krishnamurti Góes dos Anjos 

Antes da resenha do costume sobre o último livro publicado do escritor José Eduardo Degrazia, cumpre colocar alguns ‘pingos nos is’ no que diz respeito à história do miniconto brasileiro. Pingos nos is” significando deixar algumas coisas mais esclarecidas, organizar aspectos confusos, discernir melhor entre uma coisa e outra e lhe conferir um reconhecimento inegável. 

Na questão de genealogia do miniconto (também conhecido como microconto, minificção ou conto em miniatura), há quem veja seus primórdios no texto de Machado de Assis “Um apólogo”, do livro Várias histórias (1886) ou em Raul Pompéia com suas Canções sem metro, publicado em 1900, cinco anos após sua morte. Atribuir conotações de gênero novo para esses textos constitui, em verdade, um exagero. Não passam de circunstâncias criativas e ocasionais de seus autores, embora não duvidemos das suas qualidades intrínsecas. 

Em verdade, o movimento que parece marcar a ficcionalidade diminuta contemporânea tem de fato suas raízes mais profundas no Modernismo de 1922. A partir desse evento, que trouxe a fragmentação da linguagem, o instantâneo poético, a introjeção do ficcional no poético e do humor irônico na prosa, dentre outras características, é que foi se firmando os contornos do que hoje entendemos como minificção. É verdade que Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, entre outros, mais tarde escreveram trabalhos no gênero, entretanto, quando os conceberam, ainda não havia um sentido muito claro do gênero. Pode-se afirmar, inclusive, que tais autores, ao se valerem de um cruzamento irrefreável entre prosa e poesia, poema e ficção, buscavam mais uma renovação de estofo verbal. 

Já nas décadas de 1960 e 1970 surgem autores que efetivamente deram início de modo mais orgânico à minificção no país. Wendell Guiducci, em Origens e consolidação do miniconto no Brasil, registra que a palavra miniconto aparece pela primeira vez numa plaquete do Grupo mineiro de Guaxupé (Francisca Vilas Boas, Elias José, Sebastião Rezende e Marco António de Oliveira), 20 mini-nontos, de 1969. Ainda faltam estudos sobre esses textos, mas parece indiscutível que é aqui que se deve situar o início mais efetivo da prática, não em Ah, é? (1994), de Dalton Trevisan (falecido aos 99 anos de idade). Antes de Trevisan, Elias José já publicava minicontos em periódicos desde 1968. À época, essa prática literária era nova, surpreendente e recebida com suspeita. Quando do Ah, é?, do Dalton Trevisan, de 1994, já existia ambiente mais propício à nova expressão literária. 

O escritor José Eduardo Degrazia está entre os autores precursores do gênero no Brasil. Entre os anos de 1996 e 2000, publicou três livros no gênero: O atleta recordista (1996), A orelha do bugre (1998) e A terra sem males (2000). Saliente-se que, desde pelo menos 1974, Degrazia vinha publicando minicontos no jornal Correio do Povo do Rio Grande do Sul. Vale também o registro de que este autor, ao lado de Dalton Trevisan e de Marina Colasanti, entre outros, pertencem à geração ou grupo de autores que levará à explosão desta prática no século XXI. Citar nomes nesse árduo caminho que é a literatura é sempre difícil e geralmente incorremos em faltas graves. A minha geração (anos 1990), por exemplo, assistiu a uma grande variedade de autores de minificção, como João Gilberto Noll, Rubem Fonseca, Moacyr Scliar, Luiz Arraes, Carlos Herculano, Fernando Bonassi, Luiz Ruffato e, mais recentemente e com destaque, Whisner Fraga, Mário Sérgio Baggio, Alê Motta e Fernanda Caleffi Barbetta. 

Temos então o registro da contribuição de José Eduardo Degrazia para o miniconto, que deve ser, portanto, reconhecida e valorizada. Muito bem. Eis que encontramos o autor nesse novo O homem que escrevia nobar (contos, 2024, Editora Sulina). Como sabemos, na ficção de estrutura curta, a ideia perseguida pelos autores é que num mínimo de palavras seja apresentado todo um contexto e uma ação em torno do pouco que é revelado e, mais importante que mostrar, sugerir, deixando ao leitor a tarefa de "preencher" as elipses narrativas e entender a história por trás da história escrita. 

Nesse mister, Degrazia é, sem favor, um mestre. Consegue, nos 56 minicontos reunidos, convergir duas das principais vertentes do gênero. A do conto miniaturizado dentro do poema de feição ficcional. Melhor dizendo, a gradativa redução da configuração física dos textos se ajusta, se amolda, perfeitamente, em subjetividades nas quais o andamento lírico do texto aproxima o miniconto pós-moderno do poema. Tudo dentro da construção de imagens e sínteses. Sobre a obra do autor, já o crítico literário galego Xosé M. Eyré, afirmou “o miniconto é uma narrativa de extrema contenção, mas que nunca perde a necessidade de contar uma história, tendo personagem, ambientação e tempo”. 

Os trabalhos de Degrazia, no gênero, abordam principalmente as relações do cotidiano, a solidão das grandes cidades, as crises pessoais e sociais, sempre dando uma aparência de simplicidade que acaba encontrando a epifania através do insólito, do que rompe subitamente com a ordem. E tudo isto, convenhamos, não é pouco, ainda mais em desfechos em que o imprevisível toma corpo. O miniconto deve ser sempre imprevisível, essa é a sua principal virtude que ocorre a abarcar as narrativas sob tantos e tão variados temas da vida, vistos sob as mais diversas óticas: metaficção, ironia, paródia, humor, intenção crítica. Daí o necessário impacto sobre o leitor, fustigado a reler os textos. 

Para quem não sabe, vale ainda um acréscimo. O autor há mais de 50 anos vem trilhando uma discreta carreira literária que já frutificou em 36 livros de contos, minicontos, poesia, romance e infantojuvenis, além de dezenas de crônicas e artigos em jornais. E não é só. Traduziu livros de Pablo Neruda, poetas latino-americanos e italianos e já foi premiado em poesia, conto, teatro e tradução. 

Temos neste O homem que escrevia no bar o aflorar nos textos de um humanismo que nos deixa entrever os caminhos que podemos percorrer para alcançar uma humanidade mais justa. Este o autoconhecimento que a literatura propicia, porque o discurso literário nos possibilita, também, melhor conhecer o próximo dentro das diferenças de que todos nós somos portadores. Como não se encantar com textos como “O estudante e a costureirinha”, “A moda” ou “A calcinha vermelha”, que revelam as possibilidades do amor, seus desvãos, quedas e delícias? Como não refletir demoradamente sobre a nossa consciência social ao lermos textos como “Coisas de futebol”, “Os supremos” ou “A invasão dos bárbaros”? Como não pensar seriamente sobre o trabalho do escritor e as dificuldades que enfrenta num país como o Brasil, ao ler “Na feira do livro” ou “O escritor mitômono”? Como não se emocionar, e profundamente, com narrativas como “O passarinho”, “Catatonia” ou “Velhos”? 

O conto-título, e de maior extensão na obra, é um verdadeiro achado ficcional. Narra uma história única, porém fragmentada em minicontos entrelaçados ao todo da narrativa. Cada unidade é a personalidade que se manifesta, e o todo é a ambiência, o tempo que passa. Márcia Ivana Lima e Silva, que assina o prefácio do livro, afirma com muito acerto que a ficção do autor é tecida em “instantâneos que elevam nosso espírito aos grandes temas, igualando-se à filosofia.” E mais adiante: “mais do que apresentar mundos diversos, o livro de Degrazia nos indica caminhos de representação de si e de validação do outro, num jogo de espelhamento que reflete, às vezes, o azul dos céus, e outras a lama da estrada”.


“O homem que escrevia no bar”
Contos
José Eduardo Degrazia
Editora Sulina – Porto Alegre / RS
2024
96p. 
ISBN 978-65-5759-175-8 

Links para compra e pronto envio: https://editorasulina.com.br/detalhes.php?id=884 

 

Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor, entre outros, de O Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Embriagado Intelecto e outros contos, À flor da pele (contos) e Destinos que se cruzam (romance). Possui textos publicados em revistas no Brasil, Portugal, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. O Touro do rebanho (Editora Chiado, romance histórico) obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE/RJ) em 2014. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea, colaborando em diversos jornais, revistas e sites literários.