14 de out. de 2025

Fragmento do romance ‘Destinos que se cruzam’

Por Krishnamurti Góes dos Anjos

XXVIII - p. 146


Salão de festas com poucos convidados. Umas cantoneiras com rosas, muitas rosas. O lustre de cristal cintilando, garrafas de champanhe a todo momento espoucam. O piano vibra, pares valsam. Rosa e Helena conversam. Helena senhorita de vinte anos. Rosa mais velha, trinta e poucas primaveras, e viúva. Uma ainda vivendo entre nuvens de sonhos virginais, a outra, calejada nas sendas do amor. O pueril em diálogo com a experiência firmada.
A um canto, Carmine palestra em um grupo em que se inclui o doutor Karpatoso, alienista chefe do manicômio de Salvador, que acabara de comprar cinquenta camas de ferro. Rosa pergunta:

         – Você que acha, Helena?

         – É ele? Qual?

         – O que está naquele círculo...

         – Não vejo. São tantos!

         – Aquele com o terno marrom.

         – Aquele de óculos?

         – Não. Repare – apontando -, aquele...

         – Ainda não pude descobrir.

         – Aquele, olha, de marrom, corado, sério.

         – Aquele de nariz comprido?

         – Acertou. Sim.

         – Não o conhece? É o Carmine Alfano, dono de uma fábrica de camas.

         – Bonitinho, não acha?

         – Deixe de tolices, Rosa, o homem é casado...

         – É nada demais se admirar um homem bonito?

         – A fuxicaria na cidade comenta que a esposa vive sempre indo para a Europa.

         – Melhor ainda.

         – Tem graça... o homem continua sendo casado.

         – Você tudo censura! Coisa própria de gente de sua idade.

         – Você é que está parecendo uma menina.

         – Porque gostei dele? Tolinha.

         – Pelos modos.

         – Olha, Helena, como ele me passa os olhos, observa...

         – Não vejo nada.

         – Você também... para que tem olhos?

         – O homem já está é escabreado...

         – Você já começa!

         – E é por sua causa.

         Rosa solta um suspiro:

         – Quem me poderá apresentá-lo?

         – Eu. Conheço-o. vendeu há alguns dias umas camas para o papai.

         – Que achado! Que belo!

         – E se você ficar acanhada?

         – Acanhada, eu? Você não me conhece, Helena. Não mesmo... Ajude-me aqui, preciso afrouxar um pouco o colarinho desse sapato, está muito apertado... – Rosa apoia-se em Helena e, ao invés de afrouxar a fivela do sapato esquerdo, desafivela-o completamente.

         – Helena, logo que termine essa valsa você o chama, pergunta qualquer coisa e zás, apresenta-me.

         – Depois não vá ficar de mãos frias, trêmulas...

         – Não se importe. Mas olha, não é um encanto, parece uma figura de cinema.

         – Vixi! Não tem sal, não.

         O doutor Karpatoso aproxima-se das duas. A valsa finda. Confusão de pares na sala. Rosa diz baixinho a Helena:

         – Meu Deus, como se é bonito assim?!

         Ao que Helena responde gracejando:

         – Uma flor, uma folhinha de manjericão.

         – Você parece uma tonta. Estão ouvindo seus gracejos.

         – E eu que me importo?

         – Olha que teu pai pode ouvir.

         – É isto mesmo que eu quero.

         O doutor Karpatoso delas se aproxima e prontifica-se a apresentar Rosa a Carmine. Chama-o discretamente.

         – Senhor Alfano, a senhorita Rosa.

         – Muito prazer, senhorita.

         – Grande satisfação, cavalheiro.

         – Acho que a conheço de vista.

         – Sua fisionomia também não me é estranha... O senhor não esteve na Pérgola da Associação na sexta-feira passada?

         – Não, senhorita.

         – Era capaz de jurar.

         – Enganou-se, talvez alguém parecido comigo.

         Rosa morde a ponta do lenço e pergunta:

         – E de onde então o senhor já me vu?

         – Tenho uma loja à rua do Colégio. Será que não teria sido de lá?

         – Ah, sim, recordo-me agora. Acho que foi de lá mesmo que nos conhecemos... sabe? Eu nunca dormi em uma cama daquelas que o senhor fabrica. Parecem confortáveis – isto ela disse com afetação na voz.

         – Confortabilíssimas, posso lhe assegurar...

         O piano vibra um “one-step”. Pares saem pela sala valsando.

         – O senhor não valsa, senhor Alfano?

         – Não. Agrada-me conversar com a senhorita.

         – Bondade do senhor.

         Aqui, Helena, que estivera calada, diz:

         – Rosa, guarde meu leque. Até a volta. – e sai nos braços de um rapaz.

         – Admiração simplesmente – diz ele retomando a conversa.

         – Como o senhor é amável...

         – Os nossos olhos contemplando um rosto formoso como o da senhorita sentem-se felizes.

         E ela fingindo envergonhada responde:

         – O senhor quer troçar-me?

         – Sou incapaz.

         – O senhor não se zanga se eu lhe disser uma coisa?

         – De sua boca nada me contrariará.

         – Olha que o senhor pode se aborrecer.

         – De forma alguma. Estou por lhe ouvir...

         – Tenho receios... – diz disfarçando-se com a pulseira.

         – De quê?

         – De que me percebam, me ouçam e até me julguem mal...

         – Então... vamos à janela?

         – Na janela não.

         – Por quê?

         – Tem os olhos da rua...

         – Que tem?

         – São indiscretos.

         – Tem razão. Sei una ragazza molto... desculpe. És previdente.

         – Oh, acho o italiano uma língua tão bonita... mas se acharmos outro lugar – e baixa a vista para o chão.

         – Creio que no fundo há uma sala.

         – Pelo que o senhor quiser...

         – Dá-me seu braço?

         – Com satisfação.

         Se dirigem para uma pequena sala de estar, onde só existe uma mesa redonda, um vaso de flores e duas cadeiras. Sentam-se um de frente para o outro.

         – Agora sim – ela diz.

         – Lindas flores, não acha? – pergunta ele.

         – Sim. São belas. Adoro os cravos.

         – Eu adoro rosas.

         Ela pega uma margarida e diz:

         – Vou decidir minha sorte.

         – Não precisa. Será feliz – e ela desfolhando a margarida vai dizendo bem-me-quer, mal-me-quer. Carmine interrompe o desfolhar com a pergunta:

         – Sim... mas ficastes de dizer-me algo...

         – Quê?

         – O que me prometeu...

         – O senhor acaso já não percebeu? Acaso não sabe que simpatizei muito com o senhor? Pena que sejas casado...

         – Ora. Vejo que já sabes algo mais a meu respeito... Não tenha receios, sou casado, mas é como se não fosse...

         Depois dessas e de outras falas no mesmo tom, sorrateiramente o pé da Rosa humana, aquele que fora desafivelado no salão de dança, entrou a fazer “carícias” nas pernas do italiano. Carícias que, se não reveladas, podem ser adivinhadas.


O romance Destinos que se cruzam está disponível AQUI


Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor, entre outros, de O Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Embriagado Intelecto e outros contos, À flor da pele (contos) e Destinos que se cruzam (romance). Possui textos publicados em revistas no Brasil, Portugal, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. O Touro do rebanho (Editora Chiado, romance histórico) obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE/RJ) em 2014. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea, colaborando em diversos jornais, revistas e sites literários.