Por Krishnamurti Góes dos Anjos
XXVIII - p. 146
Salão de festas com
poucos convidados. Umas cantoneiras com rosas, muitas rosas. O lustre de
cristal cintilando, garrafas de champanhe a todo momento espoucam. O piano
vibra, pares valsam. Rosa e Helena conversam. Helena senhorita de vinte anos.
Rosa mais velha, trinta e poucas primaveras, e viúva. Uma ainda vivendo entre
nuvens de sonhos virginais, a outra, calejada nas sendas do amor. O pueril em
diálogo com a experiência firmada. A um canto, Carmine
palestra em um grupo em que se inclui o doutor Karpatoso, alienista chefe do
manicômio de Salvador, que acabara de comprar cinquenta camas de ferro. Rosa
pergunta:
– Você que acha, Helena?
– É ele? Qual?
– O que está naquele círculo...
– Não vejo. São tantos!
– Aquele com o terno marrom.
– Aquele de óculos?
– Não. Repare – apontando -, aquele...
– Ainda não pude descobrir.
– Aquele, olha, de marrom, corado,
sério.
– Aquele de nariz comprido?
– Acertou. Sim.
– Não o conhece? É o Carmine Alfano,
dono de uma fábrica de camas.
– Bonitinho, não acha?
– Deixe de tolices, Rosa, o homem é
casado...
– É nada demais se admirar um homem
bonito?
– A fuxicaria na cidade comenta que a
esposa vive sempre indo para a Europa.
– Melhor ainda.
– Tem graça... o homem continua sendo
casado.
– Você tudo censura! Coisa própria de
gente de sua idade.
– Você é que está parecendo uma menina.
– Porque gostei dele? Tolinha.
– Pelos modos.
– Olha, Helena, como ele me passa os
olhos, observa...
– Não vejo nada.
– Você também... para que tem olhos?
– O homem já está é escabreado...
– Você já começa!
– E é por sua causa.
Rosa solta um suspiro:
– Quem me poderá apresentá-lo?
– Eu. Conheço-o. vendeu há alguns dias
umas camas para o papai.
– Que achado! Que belo!
– E se você ficar acanhada?
– Acanhada, eu? Você não me conhece,
Helena. Não mesmo... Ajude-me aqui, preciso afrouxar um pouco o colarinho desse
sapato, está muito apertado... – Rosa apoia-se em Helena e, ao invés de
afrouxar a fivela do sapato esquerdo, desafivela-o completamente.
– Helena, logo que termine essa valsa
você o chama, pergunta qualquer coisa e zás, apresenta-me.
– Depois não vá ficar de mãos frias,
trêmulas...
– Não se importe. Mas olha, não é um
encanto, parece uma figura de cinema.
– Vixi! Não tem sal, não.
O doutor Karpatoso aproxima-se das
duas. A valsa finda. Confusão de pares na sala. Rosa diz baixinho a Helena:
– Meu Deus, como se é bonito assim?!
Ao que Helena responde gracejando:
– Uma flor, uma folhinha de manjericão.
– Você parece uma tonta. Estão ouvindo
seus gracejos.
– E eu que me importo?
– Olha que teu pai pode ouvir.
– É isto mesmo que eu quero.
O doutor Karpatoso delas se aproxima e
prontifica-se a apresentar Rosa a Carmine. Chama-o discretamente.
– Senhor Alfano, a senhorita Rosa.
– Muito prazer, senhorita.
– Grande satisfação, cavalheiro.
– Acho que a conheço de vista.
– Sua fisionomia também não me é
estranha... O senhor não esteve na Pérgola da Associação na sexta-feira
passada?
– Não, senhorita.
– Era capaz de jurar.
– Enganou-se, talvez alguém parecido
comigo.
Rosa morde a ponta do lenço e pergunta:
– E de onde então o senhor já me vu?
–
Tenho uma loja à rua do Colégio. Será que não teria sido de lá?
– Ah, sim, recordo-me agora. Acho que
foi de lá mesmo que nos conhecemos... sabe? Eu nunca dormi em uma cama daquelas
que o senhor fabrica. Parecem confortáveis – isto ela disse com afetação na
voz.
– Confortabilíssimas, posso lhe
assegurar...
O piano vibra um “one-step”. Pares saem
pela sala valsando.
– O senhor não valsa, senhor Alfano?
– Não. Agrada-me conversar com a
senhorita.
– Bondade do senhor.
Aqui, Helena, que estivera calada, diz:
– Rosa, guarde meu leque. Até a volta.
– e sai nos braços de um rapaz.
– Admiração simplesmente – diz ele
retomando a conversa.
– Como o senhor é amável...
– Os nossos olhos contemplando um rosto
formoso como o da senhorita sentem-se felizes.
E ela fingindo envergonhada responde:
– O senhor quer troçar-me?
– Sou incapaz.
– O senhor não se zanga se eu lhe
disser uma coisa?
– De sua boca nada me contrariará.
– Olha que o senhor pode se aborrecer.
– De forma alguma. Estou por lhe
ouvir...
– Tenho receios... – diz disfarçando-se
com a pulseira.
– De quê?
– De que me percebam, me ouçam e até me
julguem mal...
– Então... vamos à janela?
– Na janela não.
– Por quê?
– Tem os olhos da rua...
– Que tem?
– São indiscretos.
– Tem razão. Sei una ragazza molto...
desculpe. És previdente.
– Oh, acho o italiano uma língua tão
bonita... mas se acharmos outro lugar – e baixa a vista para o chão.
– Creio que no fundo há uma sala.
– Pelo que o senhor quiser...
– Dá-me seu braço?
– Com satisfação.
Se dirigem para uma pequena sala de
estar, onde só existe uma mesa redonda, um vaso de flores e duas cadeiras.
Sentam-se um de frente para o outro.
– Agora sim – ela diz.
– Lindas flores, não acha? – pergunta
ele.
– Sim. São belas. Adoro os cravos.
– Eu adoro rosas.
Ela pega uma margarida e diz:
– Vou decidir minha sorte.
– Não precisa. Será feliz – e ela
desfolhando a margarida vai dizendo bem-me-quer, mal-me-quer. Carmine
interrompe o desfolhar com a pergunta:
– Sim... mas ficastes de dizer-me
algo...
– Quê?
– O que me prometeu...
– O senhor acaso já não percebeu? Acaso
não sabe que simpatizei muito com o senhor? Pena que sejas casado...
– Ora. Vejo que já sabes algo mais a
meu respeito... Não tenha receios, sou casado, mas é como se não fosse...
Depois dessas e de outras falas no
mesmo tom, sorrateiramente o pé da Rosa humana, aquele que fora desafivelado no
salão de dança, entrou a fazer “carícias” nas pernas do italiano. Carícias que,
se não reveladas, podem ser adivinhadas.
O romance Destinos que se cruzam está disponível AQUI.
Krishnamurti
Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor,
pesquisador e crítico literário, é autor, entre outros, de O Crime dei
Caminho Novo (romance histórico), Embriagado Intelecto e outros contos,
À flor da pele (contos)
e Destinos que se cruzam (romance). Possui textos publicados em revistas
no Brasil, Portugal, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e
Espanha. O Touro do rebanho (Editora Chiado, romance histórico) obteve o
primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE/RJ) em 2014. Atuando com a
crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira
contemporânea, colaborando em diversos jornais, revistas e sites literários.