8 de set. de 2025

A morte não é nada asséptica

Por Milton Rezende

 
Linguagem do escuro
 
Agora que a luz se apagou
e a solidão restabeleceu seu domínio,
ouço com receio a linguagem do escuro
que me des-norteia a vida.
 
Nasci sob o signo da morte
mas prefiro-a assim,
conquistada aos poucos.
Porção diária de veneno
que injeto na raiz da vida
até que ela, afinal, desapareça.
 
E a linguagem do escuro prevalece
(ainda que se acendam todas as luzes)
como sendo a linguagem universal de tudo
a tecer as teias da incompreensão fraterna.
 
Do livro Areia (À Fragmentação da Pedra).




Na estrada
 
Viagem tensa:
Chuva
Queda de barreiras
Acidentes
Vítimas fatais
Engarrafamentos
Quilométricos
Susto e tédio.
Chegamos há dez
Minutos e estou
Ligando pra avisar
Que te amo.
 
Do livro O Jardim Simultâneo.
 

Nada do que se vê é real
 
Casas em construção
abandonadas no meio
do matagal, este era
o cenário de devassidão
que eu frequentava.
 
Sempre o inesperado
poderia acontecer ali
e eu entrava com um
pé atrás devido em parte
à educação que tivera.
 
O ser humano é muito precário
e eu verificava isso nos dejetos
que encontrava pelo caminho,
num rastro de podridão que
contrastava com os discursos.
 
Fogões improvisados com tijolos,
restos por todos os lados e a vida
afinal não era nada daquilo que se
falava nas igrejas e nos congressos
e a sociedade era uma imundície.
 
Retalhos de panos queimados, plásticos,
aço enferrujado, latarias retorcidas e um
mau cheiro de urina e de animais mortos
em meio aos outdoors de mulheres e políticos
nos cartazes rasgados do mundo das celebridades.
 
A morte é a única realidade e não é nada asséptica. 
 
Do livro O Jardim Simultâneo. 

 

Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, morou em Campinas (SP), Ervália (MG) e retornou a Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quinze livros publicados. Tem um site e um blog. 

Fortuna crítica: “Tempo de Poesia: Intertextualidade, heteronímia e inventário poético em Milton Rezende”, de Maria José Rezende Campos (Penalux, 2015).