2 de jun. de 2023

‘Tentei chegar aqui com estas mãos’, de Luciana Moraes


Entre uma realidade que existe e outras que não existem, mas que desejam vir à tona, somos convidados a imergir num fluxo contínuo, numa obra em travessia, entremeada de imagens e sons – navegações. Aqui surge uma escrita que não se resume à dor de um momento, à vinda ou ao lapso de alegria.

Tentei chegar aqui com estas mãos poderia ser lido como uma teia de poemas em interlocução, ora ou outra, tendo elementos linguísticos do português brasileiro unidos a termos do tupi, maxacali, yoruba, inglês e espanhol . São linguagens que se procriam em diferentes versões de si mesmas, ora dialogando entre si, a partir do encaixe temático, ora pairando em lacunas especialmente deixadas no percurso.

O leitor poderá perceber que, a partir de cada um dos poemas (como unidades independentes, mas também intercambiáveis) é possível recomeçar uma nova trajetória de reinterpretação do estar no mundo. O desejo permanece inscrevendo o corpo como um poema infinito no coração de outra história;  o poema-corpo guarda e desvela seu estado presente no espaço, no passar de páginas; seu corpo-palavra segue buscando ressignificações, através de outros formatos e de novas palavras ocasionalmente criadas.

Na primeira seção, vemos poemas em diálogo ecfrástico com obras diversas, o que nos mostra que a experiência interartística nos oferece muitas possibilidades de acessos, saídas, uma diversidade de enquadramentos do olhar; geração de sentidos dessa escrita dialógica. Ainda nesta seção, há uma subseção, realizada a partir da leitura crítica de Água Viva, de Clarice Lispector e seu desdobramento em diálogos ecfrásticos.

Já na segunda seção, existe outra proposta, pois os poemas procuram realçar mais o questionamento da vida diante de situações do cotidiano, “tocado à espreita”. Desta vez, sem diálogo direto com obras artísticas, há ainda a intensa exploração dos recursos melo, fano e logopeicos. A experiência de leitura talvez possa inserir, quem a percorre atentamente, num universo de múltipla sensibilidade, até mesmo o verbo beirando o “deslimite” das expressões de um corpo sem órgãos artaudiano.

A pedra no meio caminho de Drummond, assim como a experiência de sufocamento de Kafka parecem ser resgatadas em determinados momentos, porém no sentido de querermos avançar com um outro corpo, desentranhado da pedra e das paredes, “o corpo no corpo recriando milhares”. Com autonomia em movimento, um feminino que visa estar fora do refúgio comum, para além de um estado asséptico.

Nessa escrita, em saltos semânticos, como uma espécie de “eterno retorno nietzschiano”, após um denso processo de 3 anos de pandemia, temos a denúncia de  emoções em série – entre o passado, o presente e o futuro, de modo anacrônico, em embaralhamento – quase que ininterruptamente, buscando o centro, o eixo vital na matéria. O sentido de reinvenção social vai se constituindo por meio do percurso de um corpo em movimento, questionamento e fabulação.

O “alvo grito de rapina” entrecortado nas brechas do papel talvez venha nos alertar como somos humanos e quão pouco nos realizamos nesta era viral do antropoceno, a ponto de precisarmos, de fato, ver o animismo tomar conta de nós. Nesse cenário de “eu-nosso-desmedido” da poesia, geramos novas significações às palavras, já tão surradas, em meio à vida ordinária.

O instante é extraordinário, incomensurável; mas o tempo passou e passa.

O abismo é aqui tocado, em cada instante, para alçarmos outros voos – melhores.

Quem sabe?!

 

Ultra-passagens

O poema dialoga com a obra Senecio (homem velho) (1922), Paul Klee

 

 

0. 
Vida, está aqui o recomeço,
espaço onde refaço o texto
anterior, desfeito em partes  

1.
Um anjo em brasa, à espreita, 
neste céu aberto da varanda

2.
Hoje, sexta, tão passada:
ontem ainda era segunda
toda a vista limpa, sem óculos 
tocando aquele céu aberto, soletrando-o 
à víbora do quebra-cabeça 
lecionando à pedra sobre estar no ar
mãos-pele-sopro-visão  

3.
tudo foi breve e o Agora vibra

4.
Escrevo contigo e sozinha
: com o tom drummondiAno e
um desentranhado tema da nossa espécie :
gravado no corpo com olhares
Fractais

5.
tergiversadas cores dessa sutura, unindo todas
as faces : uma paisagem híbrida, risos e choros
nas nuvens, neste umtempomuito, uma ferida doidamente
tão batida e tocada,
mas tão perplexa,
tão retrasada.

6.
Se confiaria no verbo
fazer? 

Tentei chegar aqui com estas mãos é um livro de poesia cujo nome já contém uma dubiedade proposital. Tentativa de chegar com “estas mãos” apresenta uma questão demonstrativa, um desvio do óbvio.  Nele, toco em temáticas paradoxais do ser humano, como o luto e a luta, a insatisfação e o desejo, por meio de diferentes tons, ritmos e (des)enquadramentos semióticos. A escrita segue em diálogo com os anos que temos vivido, porém, sob olhares diversos, como uma amálgama de sensações do corpo feminino que pulsa entre euforia, dor, lapsos e rememoração do tempo. Tive a intenção de explorar (no melhor sentido da palavra) o instante presente, desejando extrapolar a visão comum e descobrir outros sentidos para as palavras e para o caminho diário. Desse modo, escrever pode ser atuar com gestos dialógicos em várias esferas das artes (pelo saber e não saber), com intuito de sentir um tempo vívido: o “alvo grito de rapina”. E assim, principalmente por meio da poesia ecfrástica contemporânea, desenvolvo experiências estéticas com 31 obras de artes visuais, de variadas épocas. Há duas seções: “Diálogos Ecfrásticos”, com obras de Frida Kahlo, Clarice Lispector, entre outros artistas; e “Cotidiano Tocado à Espreita”.

Para adquirir o livro, entre em contato com a autora:

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Luciana Moraes nasceu no Rio de Janeiro, em 1993. Poeta, revisora e tradutora, graduada em  Letras (Unirio). Integra a equipe “Fazia Poesia” e o coletivo “Escreviventes”. Participou da “Oficina Experimental de Poesia” (RJ). Tem poemas em revistas como “Mallarmargens”, “Cassandra”, “Torquato” e “Letras Salvajes”. Presente em antologias e diferentes projetos como  Versão brasileira: a voz da mulher – coletânea digital de poesia, baseada na Independência do Brasil sob a perspectiva da mulher (2023, Prefeitura - RJ) – e Coletânea Off Flip de Literatura – Poesia (2023). Tentei chegar aqui com estas mãos é seu livro de estreia.