Por Milton Rezende
Flores de cemitério
Entre
a vontade ferrenha do sonho
e
o bloqueio efetivo do medo,
havia
toda a extensão de uma noite
em
que eu devia permanecer à porta
de
sua casa velando o teu sono e
vendo
a morte subterrânea do desejo.
Eu
não estava sozinho nas ruas
de
uma cidade quieta, havia sob os
meus
pés toda uma horda de cadáveres
que
se arrastavam feito minhocas e
viam
com vivo interesse o desfecho
de
minhas peripécias góticas.
Entre
a fachada fechada de sua casa
e
os portões de acesso ao cemitério,
havia
todo um roteiro desesperado
que
eu devia percorrer ao encalço de
minha
lucidez no encosto das sacadas
ou
seguir bêbado à procura de flores.
Eu
não estava sorrindo nos bares
próximos
a uma praça deserta, havia
solidão
e pânico em meus propósitos
quando
eu me dirigia ao cemitério e
com
as mãos trêmulas sobre o canteiro
eu
enchia de flores a bolsa de plástico.
Entre
a calma indiferença do teu sono
e
a obsessão doente da paixão, havia
todo
um ritual de poesia que visava
alterar
o descompasso entre o amor
caótico
que eu sentia e o abismo
de
silêncio e luz que te envolvia.
E
daqui a alguns anos
(findo
o mistério),
quando
a vida estiver
muito
longe e grande
for
a fileira de sonhos,
tu
então terá a certeza
de
ter sido a primeira
a
receber flores do cemitério.
Do livro A Sentinela em Fuga e Outras Ausências
Enterro,
finados e chuva
“Soluços, lágrimas, casa arrumada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam, lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos sérios e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões de água benta, o fechar do caixão, a prego e martelo, seis pessoas que o tomam da essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima e trespassam e apertam as correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um...”(Machado de Assis, 1839-1908).
Um a um todos foram ao cemitério naquele dia. Levavam flores e sentimentos diversos. Acordei cedo, olhos ardendo e fui me postar ao lado de um túmulo deserto. Estava terrível e eu fui ficar ali, clandestino, a observar. Não houve enterros, embora tivesse mortos para o dia seguinte. Eu seria um deles, havia deliberado já. No bolso esquerdo a lista de débitos e no outro as fotografias de família. No fim da tarde começou a chuva e o barro e as flores e aquelas pessoas indo embora deixou em mim uma sensação de vazio. Voltei pra casa dizendo até logo àqueles que nada perceberam do seu dia e eram de todo indiferentes à minha presença prevista para amanhã, ou depois... (Milton Rezende, 1962- ?).
Do livro Uma Escada
que Deságua no Silêncio
Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quatorze livros publicados. Tem um site e um blog.