21 de jun. de 2023

'Flores de cemitério' e 'Enterro, finados e chuva'


Por Milton Rezende
 

Flores de cemitério 

Entre a vontade ferrenha do sonho
e o bloqueio efetivo do medo,
havia toda a extensão de uma noite
em que eu devia permanecer à porta
de sua casa velando o teu sono e
vendo a morte subterrânea do desejo.

Eu não estava sozinho nas ruas
de uma cidade quieta, havia sob os
meus pés toda uma horda de cadáveres
que se arrastavam feito minhocas e
viam com vivo interesse o desfecho
de minhas peripécias góticas. 

Entre a fachada fechada de sua casa
e os portões de acesso ao cemitério,
havia todo um roteiro desesperado
que eu devia percorrer ao encalço de
minha lucidez no encosto das sacadas
ou seguir bêbado à procura de flores. 

Eu não estava sorrindo nos bares
próximos a uma praça deserta, havia
solidão e pânico em meus propósitos
quando eu me dirigia ao cemitério e
com as mãos trêmulas sobre o canteiro
eu enchia de flores a bolsa de plástico. 

Entre a calma indiferença do teu sono
e a obsessão doente da paixão, havia
todo um ritual de poesia que visava
alterar o descompasso entre o amor
caótico que eu sentia e o abismo
de silêncio e luz que te envolvia. 

E daqui a alguns anos
(findo o mistério),
quando a vida estiver
muito longe e grande
for a fileira de sonhos,
tu então terá a certeza
de ter sido a primeira
a receber flores do cemitério.

Do livro A Sentinela em Fuga e Outras Ausências


Enterro, finados e chuva
 

“Soluços, lágrimas, casa arrumada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam, lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos sérios e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões de água benta, o fechar do caixão, a prego e martelo, seis pessoas que o tomam da essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima e trespassam e apertam as correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um...”(Machado de Assis, 1839-1908). 

Um a um todos foram ao cemitério naquele dia. Levavam flores e sentimentos diversos. Acordei cedo, olhos ardendo e fui me postar ao lado de um túmulo deserto. Estava terrível e eu fui ficar ali, clandestino, a observar. Não houve enterros, embora tivesse mortos para o dia seguinte. Eu seria um deles, havia deliberado já. No bolso esquerdo a lista de débitos e no outro as fotografias de família. No fim da tarde começou a chuva e o barro e as flores e aquelas pessoas indo embora deixou em mim uma sensação de vazio. Voltei pra casa dizendo até logo àqueles que nada perceberam do seu dia e eram de todo indiferentes à minha presença prevista para amanhã, ou depois... (Milton Rezende, 1962- ?). 

Do livro Uma Escada que Deságua no Silêncio 

Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quatorze livros publicados. Tem um site e um blog.