Por Carla Dias
Gosta de mistérios, nem sempre de resolvê-los. Às vezes, prefere que continuem mistérios e os deixa descansar da sua curiosidade, vibrarem na observação. Quando se aposentou, e colocou a cadeira na calçada pela primeira vez, não imaginava que cumpriria, a partir daquele gesto, horário comercial. Os filhos acharam interessante no primeiro dia; no quinto, queriam marcar consulta com o psiquiatra.
Ele disse
que não precisava.
Eles não
acreditaram.
O psiquiatra
disse que não precisava.
Eles não
aceitaram.
Aos poucos,
os filhos foram se acostumando. Acreditarem ou não deixou de ser uma questão.
Toda vez que
o almoço atrasava, os netos, que moravam em casas vizinhas a dos avós, pegavam
seus pratos, e o dele, e se sentavam na calçada, aos pés do avô. Não demorou
para que os filhos fizessem o mesmo. Os almoços na calçada só eram
interrompidos em dias de chuva, quando o avô levava sua cadeira para a garagem
da casa, mantendo os portões abertos. E, claro, no sábado e no domingo, os de
folga.
Houve quando
chamaram a polícia, mas nem souberam explicar o motivo. A presença dele na
calçada não interferia na vida dos transeuntes, porque viviam em uma cidade
tranquila, e elas eram largas. Também não incomodava com barulhos, porque,
muito elegante, ele falava pausadamente, em um tom que não interferia na paz
interior de ninguém.
O pai de
santo da cidade foi visitá-lo, porque tinha certeza de que o espírito dele
estava em confusão. Acabou ficando para o almoço da quarta, dia em que o funcionário
da calçada ganhava meia hora a mais, por causa da feijoada. O religioso saiu de
lá quase anoitecendo, convencido de que o espírito do outro estava no lugar
certo.
Nunca foi
religioso, mas adorava o sol. Uma das filhas teve de insistir para que usasse
protetor solar, mas só conseguiu que ele aceitasse ao dizer que, se recusasse,
chamaria o padre para benzer de insolação. Ele gosta do protetor solar toque
seco. Porém, nunca se entendeu com Deus ou foi doutrinado pelo diabo.
A esposa
lidava com a situação como podia. O plano era de viajarem juntos, assim que se
aposentassem, mas não foi possível, ao menos não juntos. Ele deu de viajar
sozinho na própria mente; às vezes se perdia nela e voltava horas depois. Ela
escolheu pensar que, apesar disso, teve sorte, já que para ele tudo se acomodava
em uma rotina que apaziguava possíveis anseios.
O psiquiatra
disse para ela não se preocupar. Não haveria tempo para mudanças bruscas.
Agarrou-se a essa benevolência do Deus no qual acreditava, por si e por ele.
Além do mais, gostava das histórias que ele contava, que os filhos e netos
acreditavam ser inventadas, mas que ela sabia fazerem parte do que ele viveu antes
de ela entrar na sua vida.
Alguns
mistérios foram sendo resolvidos a cada noite em que se deitavam na cama para
dormir e ele começava a contar histórias até cair no sono. Depois, ela chorava
baixo, de esconder desespero. Havia momentos em que ele não sabia quem ela era,
ainda assim, dizia estar certo de que havia confiança entre eles, por isso lhe
contava ocorridos de sua infância.
Nem todas as
histórias eram alegres, também havia as afiadas, que o levavam a chorar feito
criança. E, naquele momento, ele era mesmo. No dia seguinte, ele se levantava,
enfiava-se na roupa de trabalho e se sentava na frente da casa.
Demorou
pouco mais de um ano até os filhos e os netos entenderem o que se passava. Aquilo
de sair todos os dias, sentar-se em uma cadeira na calçada, até que alguma
criança, ou mesmo adulto, aproximar-se olhar diretamente para ele, o que considerava
um convite para mais uma atuação. Então, o palhaço aposentado fazia um número,
e, por alguns minutos, a calçada se enchia de sorrisos.
Quando
silenciou, a maquiagem de palhaço em uma face vazia, sentiram-se traídos, mas
não deixaram de aparecer para o almoço na calçada.
— Já bateu
cinco da tarde, vô. Vamos entrar?
E assim um
dos netos o convencia que era hora de ir para casa.
Ela não
ligava para os comentários dos vizinhos sobre “o palhaço da calçada”. Pessoas
vinham para vê-lo, faziam piadas das quais ele ria, sem entender que eram
ofensas direcionadas a ele, não pedidos de alegria. O que antes fazia os
familiares dele se alegrarem e rirem, agora machucava com profundidade.
Quando o palhaço
partiu, aposentou-se da vida, o silêncio tomou conta de sua casa e da calçada. Os
acostumados a aparecer todos os dias para debochar dele, da dor da esposa, a “mulher
do palhaço da calçada”, levaram sua hostilidade para outras calçadas, direcionaram-na
à outras pessoas.
O palhaço
nunca foi religioso, mas houve um dia em que a lucidez passou o dia com ele,
que viu com clareza o que acontecia a si e como os outros respondiam, e pediu a
Deus para que as pessoa compreendessem o sorriso em vez de debocharem da sua falta
de dentes.
Carla Dias é paulista de Santo André. Escritora, baterista e produtora
cultural, autora dos livros Os estranhos (romance – sic,
2009), Estopim (romance – sic 2012), O
observador (contos – Penalux, 2016), Livro das confissões (poesia – Patuá, 2018), Baseado em palavras não ditas (romance
– Edição do Autor, 2019), Fugas, pausas e desatinos (Laranja Original, 2022) entre outros. É cronista do
Crônica do Dia desde 1998, ano de lançamento. Baterista da banda OsQuatro, vem
trabalhando um repertório autoral com poemas de sua autoria musicados.