Por Cynthia Beatrice Costa
Com suas alusões à sexualidade feminina, à crise da fé e à desigualdade social, o clássico do terror vai bem além dos sustos corriqueiros
Há meio século, o público arrepiou-se pela primeira vez diante das estrepolias demoníacas de Regan, a garotinha possuída do filme O exorcista (1973), de William Friedkin. Até aquele momento, o cinema nunca vira nada igual. Hoje, o filme continua excelente — extremamente bem construído e interpretado. Como são raros os terrores com tamanha astúcia e profundidade, merece atenção renovada.
O exorcista é uma adaptação do
livro homônimo de 1971 de William Peter Blatty, que também escreveu o roteiro
para o filme e o produziu. E, como tal, ocupa posição privilegiada entre os
casos em que críticos concordam em peso que a versão cinematográfica supera a
literária. (Quem gosta do filme, porém, deve ler o livro, que contém detalhes
sobre as trajetórias de várias personagens.) A música de abertura de Mike
Oldfield e a fotografia de Owen Roizman certamente colaboram para o feito.
Em sua estreia, o longa-metragem de Friedkin
causou comoção. Espectadores sensíveis saíram intempestivamente das salas de
cinema. Anos mais tarde, a fita VHS teve sua venda proibida no Reino Unido por
uma década (de 1988 a 1998). É difícil imaginar tamanho furor, pois os efeitos
mecânicos e a própria fama de certas cenas impedem que o público atual se
choque tanto. Porém, a falta de sustos ou mesmo de medo não prejudica a
experiência. É interessante ver e rever O exorcista por outros motivos.
O primeiro deles é a interpretação magistral de
Ellen Burstyn, que confere fidedignidade e elegância à sua personagem, a atriz
Chris MacNeil, mãe de Regan (papel imortalizado por Linda Blair). Sua tentativa
de ajudar a filha em surto serve de fio condutor à primeira metade da
narrativa. Acompanhamos, passo a passo, sua queda em completo desespero materno.
A questão da maternidade em filmes de terror — já comentada antes nesta coluna
— tem em O exorcista um de seus pilares: a filha pré-adolescente que a
mãe, abismada diante da rápida transformação, já não reconhece. Mães assustadas
com a própria prole são abundantes nas histórias de dar medo; é como o reverso
da medalha dos comerciais de margarina. A materialização do pavor real de dar à
luz um ser estranho, sobre o qual não se tem controle.
Temos na dinâmica familiar uma das vias frutíferas
de reflexão provocada por O exorcista. O pai de Regan, de quem a mãe
procura não falar mal diante da filha, é ausente. A menina de 12 anos também
vive boa parte do tempo longe da mãe, pois esta é uma estrela de cinema ocupada
e badalada. Em um momento de solidão, ela inicia uma conversa com um certo Capitão
Howdy por intermédio de um tabuleiro ouija. Está aí o fato desencadeador da
possessão, ou, podemos inferir, do espaço dado a predadores na vida de crianças
solitárias. Quando Regan relata a nova amizade à sua mãe, já é tarde. Os
sintomas de sua terrível transformação começam a aparecer.
As demonstrações ousadas de Regan não deixam
dúvida quanto à perda – ainda que temporária – de sua inocência infantil. Ela
cospe obscenidades e se masturba com um crucifixo. Como uma menina outrora doce
promove, de uma hora para outra, tal espetáculo? A sexualidade feminina está
aflorada e descontrolada, para o horror das testemunhas.
A princípio, parece às outras personagens que
Regan está passando por uma espécie de puberdade hard-core. Mas, em um
crescendo bem calculado, o filme vai nos induzindo de maneira lógica e até científica
a descartar a possibilidade de histeria juvenil. Regan é examinada por juntas
médicas, passa por exames dolorosos, e nada. Nada que explique seu
comportamento errático, os palavrões que agora fala, os gestos sexuais, o ódio
que se exterioriza com frequência cada vez maior. Não se trata de uma crise de
pré-adolescência, garantem-nos os especialistas, nem dos primeiros sinais de
psicose. A eliminação de explicações “pé no chão” é operada de tal forma que mesmo
o espectador mais cético aceita a alternativa restante: Regan está possuída e
precisa ser exorcizada.
A figura do exorcista só se materializa na vida da
menina uma hora após o início do filme. Nem por isso deixa de ser a peça-chave.
A garotinha é apenas o veículo para o embate entre o exorcista e o demônio, que
são velhos conhecidos. Quem vem exorcizar Regan é o experiente Padre Merrin
(interpretado pelo magnífico Max von Sydow, que jogara xadrez com a Morte em ‘O
sétimo selo’). O demônio quer vê-lo de novo, e ele sabe disso.
Para o demônio, é também a oportunidade para testar
a sanidade de outro padre, o psiquiatra Damien Karras, que enfrenta uma crise
de fé e a princípio hesita quanto à possessão de Regan. Ele ajuda Merrin no
exorcismo. Não demora para que o demônio demonstre intimidade para com ele, e a
batalha passa a ser pessoal.
Karras
carrega a culpa de não ter cuidado o suficiente de sua mãe, uma imigrante grega
pobre. Um prato cheio para o demônio. Este é outro ponto em que O exorcista
vai bem além de dar sustos: escancara demônios humanos metafóricos – pobreza, culpa,
solidão, medo – na forma de um demônio literal. Karras não gostaria de se
lembrar da feiura, do isolamento, da precariedade da situação de sua mãe (e de
tantos outros como ela), mas o demônio o obriga a isso. Como lembra D. Simmons
em seu estudo sobre o terror nos anos 1970 e 80, O exorcista explora a
desigualdade social em sua implicação para o bem-estar espiritual da sociedade.
A fama e a riqueza de sua mãe não garantem segurança a Regan; ao mesmo tempo, o
abandono da mãe pobre sufoca Karras. Logo no início, um morador do metrô pede
dinheiro ao padre, afirmando ser católico. Karras ignora. O desalinho nas
relações permite a instalação do Mal.
Assim, a um só tempo, O
exorcista funciona como história de possessão demoníaca e de descoberta da
sexualidade feminina, de ausência paterna, de fé e falta de fé, de vocação, de
compaixão. Da maternidade da mulher bem-sucedida profissionalmente à diferença
entre pobres e ricos na sociedade contemporânea. O demônio obsessor, no fim das
contas, é o que menos assusta.
O exorcismo continua a ser um motif
importante no cinema de terror — agora mesmo há um “filhote” em cartaz, O
exorcista do papa — mas é seguro dizer que ninguém mais o fez como Friedkin.
É instigante retornar ao filme de 1973 e prestar atenção às diferentes camadas,
refletindo sobre um terror que espera inteligência do espectador.
Parabéns a O exorcista pelas cinco décadas
de lugar cativo em nosso imaginário.
O filme está em cartaz no Prime Video e pode ser
alugado em diversas plataformas.
Cynthia Beatrice Costa é tradutora e professora do curso de Tradução da Universidade Federal de Uberlândia, com pesquisa na área de tradução literária e adaptação cinematográfica. Nascida em Osasco (SP), formou-se em Jornalismo pela Cásper Líbero e trabalhou por mais de uma década como repórter de revistas e editora de livros, enquanto foi se especializando ao longo das pós-graduações. Sempre foi leitora voraz e cinéfila de carteirinha. Livro preferido: Dom Casmurro. Filme preferido: Janela Indiscreta.