21 de abr. de 2023

Autorretrato III e IV


Por Milton Rezende
 

AUTORRETRATO III

Eu não sou apenas
este rosto envelhecendo
sou também
aquele corpo ainda magro
mas com os pulmões já curados
e um pouco menos descrente.
Eu não sou apenas
aquelas velhas cicatrizes
numa epiderme manchada
sou também
(ainda e sempre)
as circunstâncias
daquele passado.
Eu não sou apenas
aquele sorriso juvenil
disfarçado em lentes
de óculos para miopia
minha gente
sou também
a alegria mais escondida
e um grau bem diminuído
da acuidade visual, e quanto
às cáries que vocês tinham
eu não sei,
mas as minhas
eu obturei.
Eu não sou apenas
este sexo masculino
sou também
aquele menino que imaginou
culminâncias de carinho
e acabou meio sozinho
entre hiatos e ausências
tendo que recorrer às vezes
ao antigo método.
Eu não sou apenas
aquilo que comi e que bebi
ao longo desse muito tempo
sou também
os excessos, a parte excretada
e as consequências atuais
dos hábitos continuados.
Eu não sou apenas
aquele amontoado de órgãos
sou também
as cirurgias que tive de fazer
em alguns deles
isoladamente.
Eu não sou apenas
aquelas palavras e atos
e gestos da juventude
sou também
(e depois de tudo)
as circunstâncias
advindas.
Eu não sou apenas
as caminhadas e as pausas
que fazemos para avaliar
sou também
os descaminhos, os equívocos
e o mesmo percurso no escuro
(nisso eu não mudei nada).
Eu não sou apenas
funcionário público
seus merdas
sou também poeta.

Do livro Uma Escada que Deságua no Silêncio

 

AUTORRETRATO IV

Eu sou aquele
que teve que recolher
o corpo da multidão sorridente
para não ser pisoteado por suas botas.
Eu sou aquele
que teve que lamber
as próprias feridas
para poder seguir em frente.
Eu sou aquele
que teve que enfrentar
o convívio cotidiano com a morte
por não ser adaptável às normas.
Eu sou aquele
que teve que se libertar
da imaginação literária
para poder sobreviver.
Eu sou aquele
que teve que aturar
um sorriso sardônico
no ambiente de trabalho.
Eu sou aquele
que se escondeu do palco
bem na hora da apresentação
por não saber representar.
Eu sou aquele
que viveu pelo caminho
com a consciência embotada
em consequência das pancadas.
Eu sou aquele
que digeriu todos os sapos
na falta de melhor cardápio.
Eu sou aquele
fantasma embolorado do armário
que mesmo revestido das melhores intenções
ainda assim foi recusado.

Do livro O Jardim Simultâneo

 

Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quatorze livros publicados. Tem um site e um blog.