Por Milton Rezende
AUTORRETRATO III
Eu
não sou apenas
este
rosto envelhecendo
sou
também
aquele
corpo ainda magro
mas
com os pulmões já curados
e
um pouco menos descrente.
Eu
não sou apenas
aquelas
velhas cicatrizes
numa
epiderme manchada
sou
também
(ainda
e sempre)
as
circunstâncias
daquele
passado.
Eu
não sou apenas
aquele
sorriso juvenil
disfarçado
em lentes
de
óculos para miopia
minha
gente
sou
também
a
alegria mais escondida
e
um grau bem diminuído
da
acuidade visual, e quanto
às
cáries que vocês tinham
eu
não sei,
mas
as minhas
eu
obturei.
Eu
não sou apenas
este
sexo masculino
sou
também
aquele
menino que imaginou
culminâncias
de carinho
e
acabou meio sozinho
entre
hiatos e ausências
tendo
que recorrer às vezes
ao
antigo método.
Eu
não sou apenas
aquilo
que comi e que bebi
ao
longo desse muito tempo
sou
também
os
excessos, a parte excretada
e
as consequências atuais
dos
hábitos continuados.
Eu
não sou apenas
aquele
amontoado de órgãos
sou
também
as
cirurgias que tive de fazer
em
alguns deles
isoladamente.
Eu
não sou apenas
aquelas
palavras e atos
e
gestos da juventude
sou
também
(e
depois de tudo)
as
circunstâncias
advindas.
Eu
não sou apenas
as
caminhadas e as pausas
que
fazemos para avaliar
sou
também
os
descaminhos, os equívocos
e
o mesmo percurso no escuro
(nisso
eu não mudei nada).
Eu
não sou apenas
funcionário
público
seus
merdas
sou
também poeta.
Do livro Uma Escada que Deságua no Silêncio
AUTORRETRATO IV
Eu
sou aquele
que
teve que recolher
o
corpo da multidão sorridente
para
não ser pisoteado por suas botas.
Eu
sou aquele
que
teve que lamber
as
próprias feridas
para
poder seguir em frente.
Eu
sou aquele
que
teve que enfrentar
o
convívio cotidiano com a morte
por
não ser adaptável às normas.
Eu
sou aquele
que
teve que se libertar
da
imaginação literária
para
poder sobreviver.
Eu
sou aquele
que
teve que aturar
um
sorriso sardônico
no
ambiente de trabalho.
Eu
sou aquele
que
se escondeu do palco
bem
na hora da apresentação
por
não saber representar.
Eu
sou aquele
que
viveu pelo caminho
com
a consciência embotada
em
consequência das pancadas.
Eu
sou aquele
que
digeriu todos os sapos
na
falta de melhor cardápio.
Eu
sou aquele
fantasma
embolorado do armário
que
mesmo revestido das melhores intenções
ainda
assim foi recusado.
Do livro O Jardim Simultâneo
Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 23
de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi
estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG).
Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas (SP). Escreve em
prosa e poesia e sua obra consiste de quatorze livros publicados. Tem um site e um blog.